AgirAzul Revista 1992-1998

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Edição 1

ENCONTRO INTERNACIONAL

Jovens da América reúnem-se para discutir Ecologia

A ADFG‑AMIGOS DA TERRA BRASIL se fez presente no Encontro de Jovens do Cone Sul, ocorrido em Montevidéo, Uruguai, de 15 a 29 de fevereiro, com o objetivo de promover a consciência e a participação dos jovens na análise e na busca de soluções criativas para as múltiplas crises e desafios atuais. 

Esse evento foi promovido pelo Grupo Juvenil de Ação Ecológica da REDES‑AMIGOS DA TERRA URUGUAIerealizado na Granja Ecológica da Eco‑Comunidade. As atividades foram divididas entre trabalhos práticos — como cultivos em hortas orgânicas, colheita, construção de casa de barro, etc.— e elaboração teórica, tratando de assuntos como as relações Norte‑Sul, Dívida Externa, Tecnologias Apropriadas, Biotecnologia, Eco 92, etc.

O evento reuniu jovens da Argentina, Brasil, Chile e Uruguai, bem como alguns participantes de países do Norte, como a Dinamarca e Suécia. Como resultado, o Encontro aprovou um documento sobre os temas discutidos o qual que deverá ser motivo de reflexão por parte dos jovens ou quaisquer pessoas em qualquer quadrante do mundo. O documento está sendo divulgado em todo o mundo.

Participaram pelo Brasil, além de Angela Maria Cappelletti, da ADFG‑AT, Waner S. Barreto da  AMA ‑ Carazinho, RS e Ralph S. Pires pelo Grupo Ação Direta, RJ. 

Nas duas páginas seguintes a íntegra do documento aprovado:

ENCONTRO DE JOVENS

Declaração de Ecotopia Latino-Americana 92

DESCOBRIR NOSSA AMÉRICA E CRIAR NOSSO FUTURO

Em nossa realidade atual se faz necessário o surgimento de um novo modelo cultural que traga consigo a destruição dos já existentes. A manutenção desses modelos resulta que, hoje, estejamos ante uma situação de desequilíbrio ecológico e social que ameaça o futuro do planeta.

Nós, como jovens, em busca de uma alternativa de desenvolvimento, acreditamos que o ser humano, para satisfazer suas necessidades, estabelece relações com outras pessoas e com o meio que o rodeia. Estas relações estão acompanhadas de valores que comportam uma ética. E é a ética o sustento da estrutura social que as pessoas criam para se organizarem.

A estrutura da sociedade em que estamos imersos determina uma distribuição não equitativa do poder. Isto se manifesta nas relações hierárquicas de exploração, autoritárias e competitivas que em nada satisfazem as necessidades humanas. Em uma sociedade competitiva, a falta de igualdade de condições, em relação a recursos e informações aos quais as pessoas possam recorrer, deixa bem claro a hipocrisia deste sistema. Uma ética que fomenta este tipo de relações impede o surgimento de outros tipos de estruturas sociais.

Imersos na crise desta cultura decadente, nós,jovens que participamos desse Encontro, assumimos o desafio de promover a criação de novos valores que sejam a coluna vertebral de novas culturas, que, por sua vez, sejam solidárias, mais humanas, que levem ao desenvolvimento de todas as pessoas e que sejam capazes de recriar o equilíbrio dos seres humanos entre si e com a natureza. 

É por isso que propomos a busca de uma ética que possibilite que as pessoas, de forma justa, recuperem a capacidade de decidir em todos os planos de suas vidas. Isto implica que, na necessidade de agrupar‑se com outros, o ser humano deve estabelecer relações solidárias que possibilitem a participação de todos. Para isso, é necessário assumir o compromisso de ser responsável na relação com o outro, dos outros entre si e com o meio. O que implica que, em meios diferentes, se desenvolvam culturas distintas.

Quanto aos instrumentos que o ser humano utiliza para lograr o que propõe, é fundamental recriar e difundir tecnologias socialmente apropriadas que permitam uma real participação de todos e que sejam compatíveis com o meio ambiente no qual se desenvolvem.

Fazendo uma breve análise da realidade, aparecem claramente quatro aspectos que caracterizam a relação que se estabelece a partir da distribuição desigual do poder. Estes quatro aspectos são a Dominação, a  Dependência, a Opressão e a Exploração.

DOMINAÇÃO

O que hoje conhecemos como “relações Norte‑Sul”, teve início, na América Latina, com a expansão européia há quinhentos anos. Ao impor‑se essa cultura nas Américas, perpetuou‑se um sistema de dominação baseado no saque dos recursos naturais e no extermínio das diferentes culturas. Este esquema de relações se dá a nível mundial entre as duas partes e se instala dentro de cada uma. No Sul, os grupos que estão nos âmbitos do poder, dominam, assim, aos demais.

Dentro deste plano de dominação que o Norte impõe, se instrumentalizaram as mais diversas propostas de estruturação econômica e política. A última proposta da administração Bush, a Iniciativa para as Américas, é mais outra expressão deste intento. Esta Iniciativa tem duas facetas: uma, publicamente difundida, consiste em uma proposta‑tentativa para as administrações latinoamericanas, consistindo em enganosa solução da “Dívida Externa”, pois em lugar de resolvê‑la, busca uma forma de perpetuá‑la; em um segundo momento, que não está explícito, tem o objetivo controlar e anular possíveis mudanças sociais a partir da consciência e dos movimentos ecologistas, do que derrubar os velhos modelos supostamente alternativos da economia liberal. Ela traz como única alternativa de questionamento o modelo de desenvolvimento neo-liberal.

Com esta Iniciativa, pretende‑se disfarçar a extração de recursos genéticos da América Latina e Caribe, criando‑se reservas naturais sob o controle do governo americano através de algumas de suas organizações não‑governamentais que submetem suas ações às condições impostas pelo Norte com o objetivo de obter recursos financeiros.

Como alternativa a essa Iniciativa, promovida desde o poder‑dominação do Norte até o Sul, propomos:

‑ não aceitar uma dívida que ninguém de nós contraiu e rechaçar violentamente a afirmação de que o nascido na América Latina já nasça com 1000 dólares de dívida. Se afirmamos que essa dívida não existe, tampouco pode existir o perdão da mesma.

‑ rechaçar firmemente a troca da dívida por natureza por considerar que se usa como pretexto uma dívida que não existe para converter‑nos na lixeira do Norte ou para perpetuar a dependência;

‑ contrapor a falsa Dívida Externa à Dívida Ecológica que os grupos dominantes do Norte contraíram com o Sul ao despojar‑nos de nossos recursos naturais explorando e escravizando a maioria da população;

‑ desmascarar o objetivo de anulação do Movimento Ecológico;

‑ apoiar a Iniciativa dos Povos da América, promovido pelo Pacto de Ação Ecológica da América Latina.

DEPENDÊNCIA

No Rio, os governantes reunidos seguramente se proclamarão a favor de salvar o planeta e livrá‑lo de poluentes.Para fazer a “limpeza” se fazem necessárias novas tecnologias “limpas”. O desenvolvimento destas tecnologias implica grandes investimentos que somente as grandes corporações multinacionais estão em condições de fazer. Para isso já estão trabalhando neste sentido e o produto deste trabalho é o que se mostrará na Feira das Tecnologias de São Paulo, que se realizará no mesmo período do encontro do Rio.

Por meio de acordos internacionais e sistemas impostos, na CNUMAD se promoverá a difusão destas tecnologias que estão em mãos das grandes corporações do Norte. Por implicar, sua instalação, em uma grande inversão de capital, para que estas tecnologias se transfiram ao Sul, deverão surgir novas formas de financiamento que darão continuidade à independência econômica e tecnológica dos países do Sul em relação ao Norte. É por isso que pensamos que estes tipos de tecnologias não são apropriadas para os países do Sul.

O desenvolvimento da biotecnologia implica o saque de informação genética, que faz o Norte sobre o Sul, e, na monopolização do comércio de espécies geradas através de manipulação genética.

A aplicação da biotecnologia no campo, gera uma grande dependência tecnológica (com tudo que implica) e não soluciona em nada os problemas ecológicos, indo em detrimento da biodiversidade. Ademais, ignora‑se quais são as consequências a longo prazo de sua utilização. 

A biodiversidade, assim como a diversidade cultural, é um patrimônio do Sul do qual o Norte está tratando de apropriar‑se. De fato, a grande Dívida Ecológica que tem o Norte com o Sul em parte se deve ao saque, que se tem praticado nesta matéria. 

Quanto a declarar a biodiversidade patrimônio da humanidade, não estamos de acordo, pois o Norte utiliza isto como instrumento para defender os seus interesses.

Propomos o uso de tecnologias que possibilitemum desenvolvimento ecológico, e socialmente sustentável, embasado nas necessidades humanas e que gerem uma relação harmônica com o meio ambiente.

Também propomos, como alternativas para evitar as aplicações de biotecnologias no campo, o desenvolvimento de técnicas agroecológicas que ressaltem a biodiversidade buscando a estabilidade dos ecossistemas e sejam orientados a satisfazer, primordialmente, as necessidades da população antes que as do mercado.

Enquanto as tecnologias estejam em mãos dos que têm o poder, todos os recursos que gera o Sul serão utilizados para manter relações de dependência.

OPRESSÃO

Para a continuidade de uma estrutura social com tantos desequilíbrios, a distribuição do poder, necessariamente, tem que manter mecanismos de opressão. 

Em nossa cultura, estes mecanismos se apresentam em dois níveis, opressão armada e opressão ideológica. A opressão armanda se reflete na intervenção militar nos conflitos sociais e ambientais, a nível nacional e internacional. Exemplo disso é a defesa de interesses com relação aos recursos naturais dos que dependem deste sistema, por todos os meios, como sucedeu na Guerra do Golfo.

A monopolização e manipulação por parte dos centros de poder dos meios de informação é uma ferramenta fundamental para a opressão ideológica. A isto se soma um sistema educativo que doutrina as pessoas para uma cultura de massificação, de consumo e de depredação.

Propomos a desmilitarização da sociedade e, como um primeiro passo, reivindicamos a objeção de consciência frente ao serviço militar.

Também propomos a redistribuição dos recursos que o militarismo desperdiça.

Acreditamos ser conveniente descentralizar a informação e promover a criação de sistemas informativos independentes e em mãos das comunidades locais.

Rechaçamos qualquer tipo de imposição militar e imposição ideológica a nível nacional ou internacional.

EXPLORAÇÃO

É necessário tomar consciência de que quando nos referimos a“recursos naturais”, estamos usando termos economicistas, pois, na realidade, estamos nos referindo a elementos naturais que, muito além de seu valor econômico, consistem em ecossistemas equilibrados.

A principal fonte de "recursos naturais” do planeta é o Terceiro Mundo. É aí onde se produz a maior parte dos alimentos para o mundo e, paradoxalmente, onde se padece de mais fome.

As comunidades locais, que são as que estão em contato direto com os recursos naturais, têm direito de decidir como os administrar e isto até hoje não tem sido reconhecido dentro de um modelo explorador que tem gerado um desajuste no equilíbrio dos ecossistemas em cada região.

Este sistema se rege por um padrão econômico. O capitalismo criou ciclos de produção que não são compatíveis com os ciclos ecológicos e isto faz com que os recursos naturais, chamados renováveis, corram perigos de extinção e, em alguns casos, cheguem ao esgotamento. As consequências disto são os grandes problemas ambientais, pois estamos eliminando certos elementos básicos que mantém o equilíbrio ecológico.

Com este marco economicista, os seres humanos são considerados apenas como um recurso e, como tal, podem ser manipulados segundo as necessidades que imponham um modelo de desenvolvimento que só procura ganâncias.

Como conseqüência da urbanização, as cidades se transformaram em centros de consumo que exploram o campo. Com um trabalho mal remunerado, os pequenos produtores rurais tratam de retirar tudo o que podem da terra. E, quando esta já não dá mais nada, vêem‑se obrigados a engrossar os cinturões de pobreza ou devastam novas regiões em busca de terra fértil para os cultivos.

Propomos estimular a descentralização das cidades, promovendo o surgimento de unidades em escala humana que permitam às pessoas produzirem seus próprios alimentos e que facilitem o surgimento de novos sistemas cooperativos integrais que satisfaçamas necessidades básicas, e que devolvam a autonomia de decisão das comunidades locais.

Uma sociedade como a nossa, que não é capaz de coexistir com outras culturas, não pode manter nenhum tipo de equilíbrio com a natureza. Neste sentido, acreditamos ser fundamental o respeito à diversidade cultural, que reflete a estabilidade do equilíbrio dos seres humanos entre si e com a natureza.

Propomos a preservação da diversidade já existente e a promoção de novas relações entre as pessoas e com a natureza, que gerem novas culturas harmônicas com o meio ambiente no qual se desenvolvem.

Levando em conta o anteriormente exposto e, havendo analisado o porquê das consequências dos problemas ambientais e sociais que nos afetam, nós, tanto jovens do Norte como do Sul, nos comprometemos:

‑ a encarar e promover alternativas tendo em vista solucionar estes problemas a nível local e global;

‑ difundir e apropriar‑nos de novos valores e das idéias aqui geradas;

‑ possibilitar a difusão dessas idéias aproveitando as redes existentes.

‑ através da rede de Granjas Ecológicas Terra do Futuro fazer real o intercâmbio de sementes, de informações e de conhecimentos;

‑ manter a comunicação em relação às atividades realizadas nos diferentes lugares onde atuam os grupos;

‑ criar uma agência de imprensa alternativa ao serviço dos grupos aqui comprometidos;

‑ sustentar uma rede de trabalho solidário;

‑ apropriar‑se das tecnologias dos meios de comunicação e informação para a difusão de nossas idéias;

‑ realizar novos espaços de capacitação e encontro até a criação de uma nova cultura ecológica sustentável.

Assinam:

Grupo Pro‑Comunitario, Córdoba, Argentina

Instituto de Ecologia Política, Chile

ADFG‑Amigos da Terra, Brasil

Grupo de Ação Direta, Brasil

Amigos do Meio Ambiente, Brasil

Grupo de Acción Ecológica Juvenil, Chile

Svanholm, Dinamarca

Sobrevivência ‑ Apoio Integral a Comunidades

Nativas y Ecosistemas, Paraguay

Jordens Vänner‑Söder, Suécia

EcoComunidad, Uruguay

GJAE ‑ REDES‑Amigos de la Tierra, Uruguay

e outros






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