AgirAzul Revista 1992-1998

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AgirAzul 1

Governo quer dólares para despoluir mas autoriza duplicação da Riocell

 Duplicação versus Despoluição: uma incoerência

Por Flávio Lewgoy*

A capacidade atual de produção da RIOCELL, de uma média de 795 TAD/d, ou 278.250 toneladas/ano, para a expansão projetada de 720.000 t/ano terá, principalmente devido à descarga de resíduos líquidos, sensível impacto ambiental e de saúde pública (Referências 1 e 2).

Com a produção atual de celuloso branqueada, o volume de efluente líquido descarregado no Guaíba é de 40.000 m/dia. Este volume corresponde a aproximadamente 10% do total de água tratada entregue à população pelo DMAE. Após a ampliação, teremos uma descarga aproximadamente 50% maior, ou seja 60.000 m/dia (1), em média.Neste enorme volume líquido, grande número de poluentes está dissolvido. Assim, conforme análises da RIOCELL (3), em média, cada m carreia para o Guaíba 3,8 gramas de organoclorados, denominados genericamente AOX, ou seja, diariamente, 152 kg, e, anualmente, ‑ considerando uma parada anual para limpeza de 15 dias ‑ uma descarga de 53,2 toneladas, em média, que ascenderiam, se for permitida a duplicação, para 79,8 toneladas/ano.

O Significado desses números

Os AOX, abreviatura de “substâncias orgânicas halogenadas adsorvíveis por carvão”, estão presentes, em pequena parcela, na água do estuário, assim como nos efluentes líquidos da RIOCELL. Nestes, são de magnitude muito maior que na água do Guaíba (3) correspondendo a cerca de cem vezes mais nos dejetos líquidos da fábrica de celulose (ver gráfico).

Foram detectados cerca de mil compostos diferentes entre os AOX. Destes, apenas perto de trezentos já foram identificados e um número ainda menor tem uma avaliação de efeitos ecotóxicos, genotóxicos, teratogênicos e cancerígenos (4). Compostos halogenados, principalmente organoclorados, para os quais existem estudos de efeitos nocivos, existentes nos AOX do branqueamento com cloro e dióxido de cloro, são relacionados abaixo (lista não‑exaustiva):

I) Cancerígenos Animais (e prováveis cancerígenos humanos)(7):Dioxinas (ver tópico especial); Trihalometanos, como Clorofórmio e Bromodiclorometano; Diclorometano; Dicloroetano; Triclorofenol PCBs (Bifenilas Policloradas); 

II) Mutagênicos e/ou Genotóxicos(8,9): Cloroacetaldeido; Cloroacetonas; Tetracloropropeno; Pentacloropropeno; 

III) Ecotóxicos e/ou Bioacumuláveis (4): Ácido Clorodehidroabiético; Pentaclorofenol PCBs; Tetracloroguaiacol; Tricloroguaiacol; Triclorofenol; Clorato (algicida, forma‑se na reação entre a lignina e o dióxido de cloro); Tetraclorobenzoquinona (10).

Os THM (TRIHALOMETANOS) e sua presença nos efluentes e no Guaíba

Repercussão da contaminação do Guaíba com organoclorados sobre atividades econômicas

Recentemente, a Agência de Proteção Ambiental (EPA) americana estabeleceu um limite superior de concentração tolerável de trihalometanos (principalmente clorofórmio, composto predominante nas emissões de fábricas de celulose) na água potável, de UM MILIGRAMA POR METRO CÚBICO (5). Os THM presentes na média das amostras podem ser calculados a partir de dois trabalhos científicos. O primeiro (3) estabelece a média das amostras colhidas, em toda a bacia do Guaíba e nos efluentes, respectivamente, em 39 e 3,780 miligramas por metro cúblico, respectivamente. A partir daí, usando o coeficiente 0,158 sobre essas médias, conforme S. Onodero e outros (6), o conteúdo de THM nas médias das amostragens será (diga‑se de passagem que, para os efluentes, o coeficiente é muito conservador) respectivamente, 6,2 e 597 miligramas por metro cúbico! Ou seja, a concentração atual, nos efluentes da RIOCELL, é, no mínimo, cem vezes maior, em THMs, que no conteúdo da água bruta do estuário

O ecossistema hídrico da Laguna dos Patos, a que pertence o Guaíba, é povoado com 106 espécies de peixes de água doce (11), muitas delas de valor comercial. No Guaíba, o Departamento Municipal de Águas e Esgoto (DMAE) em diversas campanhas de coleta (12), capturou 14 espécies de peixes, muitas de significado econômico, que proporcionam sustento a pescadores: sardinha, piava, tambicú, birú, voga, cascuco, viola, corvina, jundiá, pintado, traíra, peixe‑rei, joaninha e cará‑cartola. Segundo informações colhidas na Colônia de Pescadores da Ilha da Pintada, somente esta colônia abrange quatrocentos pescadores. É sabido que compostos do tipo mencionado nas listagens acima prejudicam a reprodução da ictiofauna, diminuindo, pois, as capturas. Embora haja outras causas contribuindo para este efeito, o fato é que a produção da pesca artesanal, tanto no Guaíba como na Laguna, vem diminuindo drasticamente, ano após ano. Esta repercussão não foi sequer considerada no RIMA, apesar de sua importância, em termos de perda de empregos. 

Duplicação versus Despoluição: uma incoerência

A Região Metropolitana de Porto Alegre é uma área crítica de poluição, nos três compartimentos ambientais ‑ ar, água e solo. O Guaíba é fortemente impactado, como, aliás, disse relatório da Missão Especial da GTZ ‑ (agência técnica oficial alemã para o meio ambiente): No Guaíba... (passa) uma grande concentração de indústrias do setor metalúrgico... vinícolas, matadouros, curtumes, uma fábrica de celulose (nosso grifo) e um pólo petroquímico. Além disso, entram no rio os esgotos não tratados da Grande Porto Alegre, com mais de dois milhões de habitantes. O problema ... se tornou mais grave ainda, por causa do lixo doméstico e industrial que foi depositado durante anos nas margens dos rios e que começam a contaminar agora a água.

Por este motivo existe em andamento um programa de despoluição do Guaíba que ambiciona obter, em financiamentos nacionais e internacionais, um total de 600 milhões de dólares (N.E.: programa Pró‑Guaíba, do governo estadual). Em contraste, a pretendida duplicação da Riocell JÁ OBTEVE financiamentos ‑ inclusive de fundos públicos ‑ de mais de 800 milhões de dólares, para, entre outros efeitos poluidores, acrescentar ao estuário, anualmente, cerca de 80 toneladas de poluentes ecotóxicos, cancerígenos, genotóxicos e teratogênicos, envolvendo riscos ambientais e de saúde pública claramente inaceitáveis à luz dos conhecimentos atuais e das tendências, na política ambiental, de países do 1º mundo.

Recentemente, no Canadá, país de orientação econômica liberal, onde, até há pouco, o limite superior oficial de DDA (N. E.: “dose diária aceitável”) para dioxinas era o maior do mundo, houve uma grande reviravolta regulatória atingindo, especialmente, emissões de AOX. A província canadense Colúmbia Britânica, responsável pela produção de metade da celulose tipo Kraft do país, baixou severas normas:todas as novas fábricas de celulose devem atingir emissões ZERO de AOX e dioxinas até o ano 2002 (Environmental Aspects of Pulp and Paper Production, de P. A. Johnston e R. L. Stringer, do Greenpeace Exeter Laboratory, Earth Resources Center, Exeter, fevereiro de 1992). Sprague (13) informa: o Lago Superior, no noroeste do Canadá, a maior massa de água doce do mundo, é uma área onde nenhuma descarga pontual de qualquer substância tóxica persistente ‑ tais como dioxinas e muitos organoclorados ‑, é permitida. 

Riocell defende emissões baixas

A RIOCELL diz que seria ela a empresa produtora de celulose, no mundo inteiro, que mais baixas emissões de AOX (por tonelada diária de celulose branqueada) libera: 0,2 kg/TAD/dia. Este argumento não pode ser aceito, por não levar em conta as características únicas do corpo receptor, o Guaíba. Este, apesar de todos os esforços até agora despendidos, não pode ser enquadrado em um modelo matemático, sendo um ecossistema hídrico de dinâmica quase caótica, de enorme complexidade. Aceitar que fontes pontuais de substâncias extremamente tóxicas, como dioxinas, dibenzofuranos e muitos outros organoclorados, impactem tal ecossistema, em tamanhas quantidades, é absurdo, para não dizer criminoso.

As dioxinas: alguns dados e análises

As dioxinas constituem uma família química de 75 isômeros. São, segundo a maioria dos especialistas, de origem antropogênica, e, sua presença no meio ambiente, provém de (entre outras fontes) da fabricação de herbicidas, conservantes de madeira e germicidas. São também originadas da descarga de motores de explosão, incineradores, cloração de celulose bruta, etc. A dioxina mais tóxica é o  2,3,7,8‑TCDD. É cancerígena a animais e ao homem (estudos epidemiológicos recentes). É a substância mais tóxica jamais testada em animais, sendo teratogênica, fetotóxica, hepatotóxica e danosa ao sistema imune, além de genotóxica. É praticamente insolúvel em meio hídrico, lipossolúvel e bioacumulável em lipídios do organismo animal. É de difícil biodegradabilidade no meio ambiente (14).

Calculando riscos para a espécie humana, a partir de experimentos animais, o órgão ambiental americano EPA admite uma ingestão, para uma pessoa com 70 kg de peso, anualmente, de 145 picogramas, baseada em uma ingestão diária de 0,4 pg/dia. Outras agências oficiais americanas, como a FDA e o CDC (Centro de Controle de Doenças) admitem doses maiores como sendo de risco mínimo à saúde humana, ou seja, aquelas que provocariam um caso de câncer por milhão (15), além dos provenientes de outras causas.

Para fins de esclarecimento, exemplifiquemos as doses envolvidas: um comprimido comum de aspirina pesa 500 miligramas; dividindo esse comprimido em 500 partes iguais, e cada parte em 1.000.000 de partes iguais, cada uma dessas alíquotas pesará 1.000 picogramas; cada picograma, dividido por 1.000, fornece a unidade final de avaliação, o femtograma.

A figura 1 é uma síntese da visão dos riscos de câncer da dioxina ao homem, segundo diferentes órgãos reguladores, em diversos países do 1º Mundo. Lembremos que o Canadá, onde essa regulamentação era a mais permissiva, está no momento, ao que tudo indica, tornando‑se no mais radical propugnador de uma política de eliminação total de dioxinas em fontes pontuais industriais (emissão zero).

Qual o significado destes valores? Tanto nos Estados Unidos como na Alemanha, os dados divulgados revelam uma ingestão diária média por pessoa elevada, com uma dose na Alemanha cerca de 45% maior, sendo de perto de 70 pg/dia/pessoa nos USA e 100 pg/dia/pessoa na Alemanha. Esta ingestão provém dos alimentos (carne, leite, água) e do ar inalado. Os padrões adotados refletem uma realidade proveniente do alto grau de contaminação ambiental decorrente da industrialização desses países, que pode ser uma das causas do alto índice de mortalidade por câncer na antiga Alemanha Ocidental. Comparemos esses índices com os do Rio Grande do Sul, ambos os dados extraídos de fontes científicas e oficiais na figura 2.

Acrescentemos que os dados do Rio Grande do Sul não estão corrigidos por faixa etária, sendo, pois, ainda menores que aqueles que a tabela mostra.

Os relatórios do especialista Peter Krauss, em poder da FEPAM, respectivamente sobre o meio hídrico e sobre os resíduos sólidos do tratamento da celulose, mostram, segundo o especialista, “uma contribuição extremamente baixa ao sistema rio Guaíba em PCDD/PCDF do lodo da Riocell”. Esta é uma opinião, sem dúvida, derivada da realidade do seu país natal.

Mostram os dados da figura 2: no Rio Grande a realidade ainda é outra. As análises do prof. Krauss mostraram, pela primeira vez, que o Guaíba, além da fonte pontual RIOCELL, está sendo contaminado por outras fontes com dioxinas. Qualquer taxa de aumento por dioxina, dibenzofuranos e outros organoclorados, por fonte pontual conhecida, representa grave risco à saúde pública e ao meio ambiente, e não só esse aporte como qualquer outro, na medida das possibilidades, deve ser evitado. As chamadas fontes urbanas não‑industriais ‑ esgotos e queima de materiais ‑ são, ainda, de difícil ‑ mas não impossível ‑ controle. Para evitar um aumento de contaminação com dioxinas e AOX, proveniente de uma só indústria, basta uma decisão política.

Referências:

1) Relatório de Impacto Ambiental (RIMA) da NATRON, Quadro 4,17

2) "RIOCELL-AN OPEN BOOK" publicação da RIOCELL (1990?)p.23

3) Ofício  FEPAM/SECOPHI/037-92, de 17.01.92

4) “THE GREENPEACE GUIDE TO PAPER", Vancouver, janeiro de 199o

5) NOTICEBOARD: "Chlorine, water and cancer risks" LANCET, 338, pig.1451,1991

6 Onodera, S. e outros - EISEI KAGAKU, vo.35, N°1, P.9-18,1989

7) SIXTY ANNUAL REPORT ON CARCINOGENS-1991-SUMARY-U.S.DEPARTMENT OF HEALTH AND HUMAN SERVICES

8) E.R.Nestimann e E.G.-H.Lee MUT.RES.,155 (1985),53-60

9) J.C.Loper MUT.RES.76(1980),241-268

10) B.-E.Bengtsson e outros ECOTOXICOL.ENVIRON.RES.,15(1988),62-71

11) L.R.Malabarba COMUNICAÇÕES DO MUSEU DE CIÊNCIAS DA PUCRS,V.2,6 a 11,p.107-180(1989).

12)  “Inventario e Classificação da Ictiofauna do Rio Guaiba e Pesquisa de Metais e Substancias Toxicas" DMAE-

P.Alegre, 1983

13)  Sprague, J.B. WAT.SCITECHNOL. 24(1991) (3/4):361-371

14) Landers, J.P., eN..Bunce REVIEW ARTICLE:THEAh RECEPTOR AND THE MECHANISM OF DIOXIN

TOXICITYBIOCHEM.J.276(1991),273-287.

15)  D.C.Barnes CHEMOSPHERE,18 (1989) 1-6,pp.33-39

* O autor é geneticista, professor universitário e membro da Comissão Técnico‑Científico da AGAPAN ‑ Associação Gaúcha de Proteção ao Ambiente Natural






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