AgirAzul Revista 1992-1998

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CONFERÊNCIA DO RIO

A Guerra de palavras entre o Norte e o Sul

Por Carlos Aveline*

No processo preparatório da Conferência do Rio, as dificuldades entre países ricos do Norte e países pobres do Sul girarambasicamente em torno de dinheiro. Certa estava a indígena Rosalia Gutiérrez, da Argentina, quando disse, no Brasil, em um encontro recente: “Quando os brancos querem salvar a natureza, eles discutem sobre dinheiro. Os índios não fazem isso”.

Os países pobres, liderados pelo Grupo dos 77, G‑77, exigem em todas as frentes do processo preparatório compromissos financeiros por parte dos países ricos antes que pensem em assumir qualquer compromisso com proteção ambiental ou dizer como pretendemgastar o dinheiro. Mas são contrários ao monitoramento internacional das florestas e recursos naturais em geral, e não aceitam compromissos internacionais que tenham força de lei.

Apóiam‑se, assim, num nacionalismo obsoleto do século passado nos trabalhos diplomáticos da ECO‑92 enquanto a maior parte dos seus governos são totalmente entreguistas em relação às corporações multinacionais e têm como primeira prioridade agradar aos técnicos do Fundo Monetário Internacional ‑ FMI, com suas políticas econômicas concretas. Para quem participasse dos trabalhos do 4º Encontro Preparatório, realizado em Nova Iorque, sem conhecer a realidade social de política dos países do hemisfério sul, a impressão seria de que governos honestos, sinceros, democráticos e comprometidos com a proteção ambiental e o bem‑estar dos seus povos estavam pedindo um pouco de boa vontade de governos de países ricos insensíveis.

O estereótipo é simplório demais. Quem governa nos países do hemisfério sul? São elites totalmente participantes do mesmo esquema de poder econômico que explora, embora em menor escala, os povos dos países mais ricos. Os governos dos países pobres representam muitas vezes elites corruptas, assassinas, antidemocráticas, responsáveis por cenas de injustiça social e destruição ambiental pior do que as que se vê nas sociedades do Norte rico.

Muitas destas elites estão envolvidas em golpes de Estado violentos, assassinatos planejados de militantes populares, genocídio de povos indígenas, proliferação nuclear (uma das principais ameaças ao mundo de hoje), e inúmeros casos de corrupção: temas sobre os quais os brasileiros viram o suficiente nos últimos anos, inclusive durante o governo Collor. As ONGs do Sul, por algum motivo, não criticavam os seus governos. E as ONGs do Norte, por motivos de ética e talvez tambémpara não serem atacadas como “pró‑imperialistas”, faziam de conta que só os seus governos estavam errados.Assim, alguns dos governos mais antiecológicos e antidemocráticos pareciam altamente progressistas.

As posições do governo brasileiro eram lamentavelmente pobres. O documento da Comissão Interministerial para a ECO‑92, a CIMA, refletia com clareza posições antiecológicas. Sobre conservação de energia, a CIMA coloca em seu documento de fevereiro de 1991 que nenhuma medida pode ser tomada, nem mesmo as mais baratas, antes que “os recursos financeiros necessários” sejam prometidos pelos países ricos. Uma posição sem sentido, como deve saber o novo secretário do Meio Ambiente José Goldemberg, que é especialista em eficiência energética. O documento da CIMA afirma também que “Quando o texto da Agenda 21 aborda a inclusão dos custos ambientais nos preços da energia, deve focar explicitamente os países ricos”. Esta colocação dá a entender que os preços da energia são subsidiados para o povo do Brasil ou de outros países pobres. Não é o caso. A energia é subsidiada para que as grandes corporações multinacionais, e o povo é quem paga a energia mais cara enquanto as indústrias consomem a maior parte da energia usada. Uma posição muito batida pelos governos do Sul é a questão da responsabilidade pela crise ambiental. De acordo com a posição adotada pela CIMA, os países ricos são os únicos responsáveis pela de devastação ambiental em nossos países. A posição esquece que sempre houve uma elite local associada aos mecanismos de dominação internacional. Por casualidade, esta elite está no poder hoje, no Brasil, como em outros países. Se devemos cobrar a responsabilidade dos países ricos — e a dívida ecológica é uma tese correta levantada pelos movimentos ecológicos — não se pode atribuir‑lhes toda a responsabilidade, porque uma parte fundamental dos mecanismos de criação de injustiça social e destruição ambiental está precisamente em nossos países pobres, mesmo que nem sempre seja cômodo dizê‑lo.

Pedir dinheiro sem que haja uma mudança nos planos de desenvolvimento em nossos países é sem dúvida inútil e perigoso. Os países pobrem vêm cobrando uma mudança de estilo de vida dos países ricos sem que eles mesmos tenham feito nada para melhorar sua situação de injustiça social, falta de democracia, ou falta de honestidade administrativa. Ao contrário, é promovendo com recursos próprios experiências em desenvolvimento sustentável baseado na comunidade que nossos governos ganharão credibilidade para exigir mudanças nos países ricos. É reconhecendo que todos os governos apresentam tantofalhas como possibilidades de melhorar suas políticas, estejam eles no Norte rico ou no Sul pobre, que as ONGs poderão dissipar as nuvens da falsa guerra de palavras entre Norte e Sul, que em Nova Iorque parecia criar um impasse diplomáticoe políticopara o processo da UNCED‑92.

O importante, no entanto, é que o êxito da ECO‑92 não está no que se poderá assinar no Rio de Janeiro. O aspecto mais central, e positivo, é que surgiu em torno das Nações Unidas um movimento mundial de cidadãos. A ONU vai ao encontro dos povos diretamente e detona um processo mundial democrático. A humanidade está entrando em assembléia‑geral. Vai ser uma assembléia linda — e longa. O debate universal que ela traz está apenas por ser aprofundado no Rio de Janeiro em junho e durante as próximas décadas. Trata‑se de compreender melhor a vida como processo evolucionário de longo prazo.

* Ao tempo da publicização deste artigo (1992), o autor era presidente daUnião Protetora do Ambiente Natural UPAN. Contatos com a Caixa Postal 189 - 93001-970, São Leopoldo, RS.






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