AgirAzul Revista 1992-1998

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AgirAzul 10

Greenpeace em Porto Alegre

O Beagle, o MV Greenpeace e o resto de nós todos

Por Ney Gastal*


 No extremo sul da América do Sul, ao sul da Patagônia, ao sul, até, da Terra do Fogo, da qual está separada por um canal, existe uma ilha chamada Navarino. Nesta ilha, há 165 anos, existia o povo mais primitivo da terra. Viviam nus, apesar do clima gélido. Não conheciam a roda. Usavam uma linguagem extremamente rudimentar. Não tinham mitos. Não conheciam o conceito de Deus. Não possuíam tradição oral. Não faziam música. Não faziam roupas. Não tinham chefes, nem organização social. Na verdade, os yahganes – este era o nome do povo - eram capazes apenas de construir arpões primitivos, frágeis embarcações de cortiça e de acender fogo. Viviam em choças, que faziam de galhos caídos, e que mal os protegiam do vento. Dormiam no chão. Não conheciam o conceito de família. Eram ainda mais primitivos que os bosquímanos do Kalahari, os aborígenes australianos ou os selvagens das Filipinas. Com uma diferença: estes povos vivem em climas quentes, ou temperados. Os yahganes (anglicismo derivado do nome que davam à terra que habitavam, já que para si próprios não tinham nome) viviam no lugar mais inóspito da Terra, em temperaturas quase sempre abaixo de zero. E nem assim haviam sido capazes de imaginar o conceito de vestimenta.

Como eram tão primitivos, não seguiam qualquer código moral. O viajante que por ali naufragasse – e os naufrágios era freqüentes – podiam tanto ser salvos, quanto ser devorados pelos yahganes. Geralmente eram devorados, nem tanto por qualquer sentimento de ameaça que pudessem provocar, mas porque eram carne fresca disponível. Comida, para os yahganes, era um bem difícil de ser encontrado. Tanto que, de forma não muito rara, comiam-se uns aos outros. Não apenas indivíduos de tribos inimigas, mas até mesmo vizinhos ou parentes que, por uma ou outra rixa, houvessem se apedrejado (os vizinhos) ou torcido o pescoço (os parentes, por esta expressão entendido quem coabitasse o mesmo “wigwam”). Os yahganes matavam seus velhos. Os yahganes eram mesmo muito primitivos. Tão primitivos que praticamente não conheciam o medo, nem o respeito ao desconhecido. Viviam, apenas. Eram pouco mais que irracionais.

Mesmo assim, no início de 1830, um jovem yahgan olhava deslumbrado a grande aparição parada no meio da baia, em frente à praia que habitava. Nunca havia visto coisa parecida. Parecia uma canoa, mas tinha grandes lanças cravadas nela, onde estavam presas coisas parecidas com peles de animais brancos. Os yahganes não conheciam o medo, mas também eram pouco curiosos. Frente ao desconhecido, costumavam recuar. Mas aquela coisa era demais para o jovenzinho. Desceu da pedra de onde estava observando, embarcou numa das canoas e foi ver a coisa de perto.

A bordo do HMS Beagle, em missão cartográfica no extremo sul das Américas, o capitão Robert FitzRoy estava furioso. Seus homens haviam descido da terra para buscar água, e os yahganes haviam roubado a baleeira que por momentos havia ficado abandonada na praia. FitzRoy precisava de todas as baleeiras para traças detalhes da costa e fazer as triangulações necessárias. Os yahganes costumavam roubar (ainda que a expressão não se aplicasse, pois não conheciam o conceito de propriedade) tudo que lhes caísse ao alcance das mãos. FitzRoy, furioso, resolveu tentar um artifício: armou um grupo e desceu à terra, disposto a recolher reféns para trocar pela baleeira. Houve luta, tiros, índios feridos (talvez mortos) mas o capitão conseguiu trazer um casal de reféns e uma criança pequena. Estava voltando para o barco quando cruzou por uma canoa com dois adultos e um menino, que gesticulava muito, excitado, apontando o Beagle. O capitão mandou, por gestos, que o menino pulasse para a baleeira em que estavam os outros reféns. O menino obedeceu. Um dos adultos resmungou algo, e FitzRoy, que já estava cheio de confusão, arrancou da sua jaqueta de capitão da Marinha Britânica um grande botão de madrepérola e o jogou para o índio. Trocou o garoto por um botão, e por isso os marinheiros chamaram ao indiozinho de Jemmy Button.

Claro que os reféns não serviram para nada. Os yahganes não ligavam a mínima ao fato de perder companheiros, e nem sequer havia no Beagle alguém que soubesse falar sua língua. Então FitzRoy os levou para a Inglaterra, com a idéia de educá-los para que, reintroduzidos à tribo, servissem de ponte entre os yahganes e os viajantes ocidentais. Por isso, em dezembro de 1831, quando o Beagle partiu da Inglaterra de volta para a Terra do Fogo, trazia, além e FitzRoy e de um jovem naturalista chamado Charles Darwin, os TRE yahganes sobreviventes, dos quais Jemmy, o garoto curioso que se havia deslumbrado com a visão d Beagle, seria o protagonista principal de uma longa e fantástica história de choques e massacres, que resultou, apenas 130 anos depois, na década de 1960, na completa extinção de seu povo. Mas esta é uma história que não cabe aqui.

Lembrei de Jemmy Button, o entusiasmado jovem da Ilha Navarino, em função da passagem do MV Greenpeace por águas sul-americanas, em especial por nossa cidade de Porto Alegre. Em dois dias de visitação a seu convés (o público não teve acesso ao interior do barco, 20 mil pessoas fizeram fila para subir a borde, e mais de uma centena de jovens voluntários lutaram pelo privilégio de colaborar, gratuitamente, no controle deste público. E, no entanto, quando a Agapan (para citar a mais tradicional das entidades ambientalistas brasileiras, criada no mesmo ano que o Greenpeace) precisa de gente para alguma campanha local, que dificuldade! Quando outras entidades precisam mobilizar meios para defender o Taim, os Aparados da Será, o Parque da Harmonia, o Morro do Osso, nunca ousam sonhar reunir vinte mil pessoas, nem contam com tantos voluntários gratuitos. Longe de mim questionar ao Greenpeace, cujo trabalho respeito e admiro. Mas por que tanta gente se interessa por um barco em viagem de relações públicas, em vês de se interessar, também, pela luta local? Os mais de duzentos novos associados que o Greenpeace fez em Porto Alegre, e que vão colaborar com dinheiros para lutas globais, por que não se associam às entidades locais? Porque não assinam o AgirAzul? Por que não fazem parte da AGAPAN? Porque não lutam para defender o que está morrendo a seu lado, em vez de se aliarem numa luta idealizada à distância?

Temo que continuemos um pouco índios, deslumbrados com barcos e navegantes que chegam do norte, destinados à extinção, para maior glória e crescimento dos colonizadores que não cansam de por aqui aportar.

(Em tempo: aquele canal que separa a Ilha Navarino da Terra do Fogo, tem hoje o nome do barco que um dia deslumbrou Jemmy Button: canal de Beagle. Dos yahganes, que ninguém conseguiu descobrir como nem por que tinham ido habitar aquele local, não resta mais qualquer traço).

(Ainda em tempo: o relato e a avaliação sobre a reunião das ONGs do Mercosul realizada a bordo do MV Greenpeace no Rio da Prata serão publicados na próxima edição do AgirAzul. Neste número, leia nota sobre os documentos dela saídos na página 19).


* Ney Gastal é jornalista e presidente da ABRAPA – Associação Brasileira de Preservação Ambiental, de Porto Alegre, RS, Brasil. Fone/fax: (051) 225-8901.






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