AgirAzul Revista 1992-1998

Todo o conteúdo editorial da publicação em papel

AgirAzul 10

O GATT e a nova era 

A Lei dos Agrotóxicos e a Normatização “ecológica”

Por Jacques Saldanha*

O GATT (Acordo Geral de Tarifas Aduaneiras e Comércio) que em 1º de janeiro de 1995 foi sucedida pela Organização Mundial do Comércio – OMC -, através da Rodada Uruguai, determinou que os países criassem normas oficias para enquadrar os países neste novo momento político-econômico-planetário, regulamentando desde a produção até a exportação dos alimentos ecológicos. 

No Brasil, foi constituído um grupo de trabalho (Portaria nº 178) formado por representantes do Ministério da Agricultura, outros órgãos públicos, e de ONGs exportadoras como o Instituto Biodinâmico, de Botucatu-SP, Instituto Verde Vida de Curitiba e PTA, do Rio de Janeiro e outros, para implementar a nova legislação interna.

Em julho de 1994, a Lei Federal dos Agrotóxicos fez cinco anos. Apesar de ter sido elaborada e, “parceria” com a indústria química nacional e multinacional e ser de conhecimento de todas as esferas do Ministério da Agricultura, do Ministério da Saúde, da Secretaria Nacional do Meio Ambiente, do IBAMA e, logicamente, dos diversos organismos estaduais envolvidos no assunto, ela “não pegou”. É de domínio público que no Brasil, diferente de outras nações do Planeta, existem leis que simplesmente “não pegam”.

Este é o nosso Brasil! Um país onde o contexto, ou seja, a ocasião, é mais forte do que o contrato, como acontece.

 Há sociólogos modernos que, ao estudarem nossa realidade sócio-político-cultural, nos definem como um país contextual e não contratual. Nada mais lógico que nossa preocupação com a dita “normatização dos produtos ecológicos” gestada pelo Ministério da Agricultura, em “parceria” com “ONGs ecologistas” pareça ser um tipo de rigorismo desnecessário. Principalmente, por ser ela fruto de um ato administrativo de uma Portaria, e não uma norma legislativa. Portaria, no Brasil, são pejorativamente chamadas de “porcarias”.

Ou seja, tão efêmeras e contextuais que podem ser alteradas, modificadas e até revogados no mesmo instante em que o representante do Executivo aponha sua assinatura formal. Poderíamos, assim, ficar tranqüilamente só olhando de soslaio, esta movimentação “contratual” de burocratas e “eco-espertocratas”. Mas estamos realmente preocupados com este fato.

Contudo, se esta Certificação aparente ser só um sinônimo de guia de exportação, qual seria o problema de tomarmos um chocolate ou um bom café com alguns destes “insumos modernos”? E, ao mesmo tempo, sabermos que nossos concidadãos planetários dos Primeiro Mundo têm o privilégio, exclusivo, de beberem estas especiarias sem nenhum dos venenos que eles mesmos fabricam? Porém, não é por aí que passa a questão.

 Poderíamos iniciar, talvez, pela nossa perplexidade ao percebermos como certas Organizações, nossas companheiras de velhas lutas contra o sistema, que sempre nos excluiu e marginalizou, conseguiram ser fisgadas por este engodo.

Como teriam se ofuscado, se deslumbrado por esta artimanha do poder público? Ou, talvez, como não nos demos conta antes, quando buscávamos juntos autonomia e flexibilidade nos meandros do sistema, quando tudo para elas era contextual, ocasional? Que não vigorava o contrato da liberdade, do “fio de bigode”? Que não éramos realmente parceiros na guerra contra a padronização, a homogeneização, a robotização que estavam sendo impostas aos corações e mentes, que teimam em extravasar pela multiplicidade de culturas, idiomas, cores e essências da diversidade planetária?

Parece-nos que a autonomia e flexibilidade que estes Grupos lutavam para construir nada mais eram do que a busca da exclusividade de terem seu próprio mercado, seu próprio padrão de produção. Mas esta decisão, a eles pertence! E os respeitamos, democraticamente, pelo reconhecimento de nossas diferenças.

Organizar um “nicho ecológico” exclusivo poder ser compreendido como parte da diversidade planetária. Se fundassem sua “parceria” com o Governo numa norma que tratasse a certificação como uma reles guia de exportação, mesmo que questionável em sua ideologia, ainda não tocaria na substância do significado da Portaria. Mas, sendo mais realistas que o rei, simplesmente resolveram padronizar e homogeneizar aquilo que não lhes pertence, por ser visceralmente livre e autárquico.

Em vez de ficarem só na ação de pilhar o alimento limpo e saudável, disponível aos próprios produtores e seus vizinhos, transformam a produção local em mercadoria global - de alto valor econômico para os conscientes e bem-nutridos compradores do Primeiro Mundo. Isto poderia ainda nos deixar até cabisbaixos, mas nunca preocupados. O que realmente nos sobressalta, no entanto, é termos constatado, embutida nesta simples portaria, uma tentativa de, liminarmente, impedir a consolidação de um processo cultural cidadão que envolve homens do campo e da cidade.

Tiram do homem da terra a possibilidade de perceber a tecnologia como seu verdadeiro instrumental, em seu processo de produção de alimentos, de quem conhece onde está (daí ecológica), em sua relação afetiva e efetiva de desenvolver a cultura no campo (daí agricultura). A portaria repete o mesmo paradigma dos pacotes tecnológicos do velho sistema da química industrial.

De novo, são alguns os iluminados que gestam e definem quem se enquadraria no sistema de “agricultura ecológica” determinado por eles. É importante ressaltar que, ao contrário do que ocorreu com a ideologia, dogmática e imperativa, dos pacotes tecnológicos dos “insumos modernos”, a agricultura ecológica resgata sempre, em sua essência, a criatividade e a inventividade. Ela fortalece a oportunidade de se desvendar a Vida que perpassa a diversidade ambiental de cada ecossistema, despertando em cada ser humano, livre e autárquico, seu poder de desvelar métodos de respeito à natureza em sua ação na agricultura.

Esta portaria retoma, de maneira explícita e manifesta, a censura, o bloqueio ao crescimento, à mudança, à alternativa que cada produtor dispõe como engenho de sua própria construção cidadã. Principalmente àqueles que, de uma forma, ainda hoje, quase clandestina, querem renunciar às amarras do domínio dos “insumos modernos”.

Por esta norma de Certificação o agricultor se embreta neste novo pacote consagrado pelos fiscais da nova ordem ou, sem saída, permanece um produtor “convencional”.

Os “eco-certificadores” serão os escudeiros deste novo-velho sistema de sujeição e empobrecimento cultural do homem da terra. E o agricultor, irá de novo pela via da clandestinidade? Refletiu um agricultor ecologista gaúcho.

Não podemos esquecer que ainda lhe ressoa a acusação de ter sido o responsável, único e arbitrário, do envenenamento da nossa comida. Provavelmente, sob a nova ordem, será o causador de se tirar de nossos filhos o que aqui é produzido limpo e saudável. Ao consumidor por um lado restará aguardar que o bolo verde fique grande o suficiente para verificar se houve ou não excedente do que foi exportado.

Ou, por outro lado, importar e mesmo receber filantropicamente, aquilo que for rejeitado pelo mercado do Primeiro Mundo – produzido aqui ou lá – pela inoperância fiscalizadora da nova ordem. Estas são algumas das inquietações que nos ocorrem e que poderiam servir de questionamento para as nossas próximas atitudes como sociedade civil que só se organiza quando conhece, para encontrarmos os caminhos de construção de novas conquistas.


* O autor é engenheiro-agrônomo e desenvolve trabalho de assessoria junto a agricultores associados da Cooperativa Ecológica Coolméia, em Porto Alegre, RS. Contatos: Rua José Bonifácio, 675 – Fone (051) 333-1131.







© 1992-1999 / 2007/2008 / 2024  João Batista Santafé Aguiar - É proibida a reprodução total ou parcial sem permissão por escrito / por email do autor ou detentor dos direitos. AVISO LEGAL - Eventualmente, os endereços informados, tanto os convencionais, como os eletrônicos como páginas web ou endereços de emails, serão os da época da publicação, não sendo mais funcionais, não havendo qualquer responsabilidade do Editor sobre o fato. Estes textos disponibilizados no AgirAzul Revista  foram produzidos nos anos de 1992 a 1998. Pessoas citadas poderão já não representar ou participar das entidades pela qual assinaram ou deram seus depoimentos ou mesmo já terem falecido. Eventualmente na versão para www.agirazul.com.br foram corrigidos erros de grafia e aplicação da língua portuguesa, além de  realizados alguns alertas sobre informações já ultrapassadas pelo tempo.