AgirAzul Revista 1992-1998

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AgirAzul 10

OPINIÃO

Os indígenas do sul do Brasil podem contribuir para a recomposição ambiental?

por Francisco Silva Noelli*

Como interessado na conservação e ampliação das áreas de preservação ambiental, principalmente do ponto de vista indígena, através de resultados de estudos arqueológicos, históricos e antropológicos, posso sugerir que há uma série de elementos culturais que convergem para uma solução adequada das questões que envolvem os Guarani, Kaingang e Xokleng, que vivem no sul do Brasil.

Antes de apresentar a sugestão, entretanto, gostaria de esclarecer minha posição dizendo que partilho da postura de alguns biólogos e etnobiólogos que trabalham na América do Sul, como Elaine Elisabetsky (UFRGS), Wilson G. Garcia (UNESP), Richard Schultes (Harvard), Briam Boom (New York Botanical Garden), William Balée (Univ. Tulane), entre tantos, que partem do princípio de que as comunidades indígenas têm muito a ensinar para a ciência ocidental. Isto se aplica aos povos indígenas do sul do Brasil, cujo abundante corpus biológico ainda é pouco conhecido.

Sobre os Guarani (Mbyá, Ñandeva e Chiripá) há informações acumuladas desde o início do século XVII. Por exemplo, existem verdadeiros compêndios para clinicar, como a Materia Médica Misionera, concluído e impresso nas reduções jesuíticas, em 1710, pelo Irmão Montenegro, onde é apresentada parte da fitoterapia Guarani tradicional. Posteriormente, dispersas pela extensa bibliografia, encontramos muitas informações úteis à biologia, especialmente nas publicações de Moisés Bertoni, León Cadogan e Carlos Gatti.

Sobre os Kaingang e Xokleng também há informações similares, porém em menor quantidade e dispersas em volumosa bibliografia, embora ainda não exista uma aprofundada pesquisa publicada sobre as questões etnobiológicas desses grupos. Contudo, é de conhecimento público, pelo menos dos que circulam entre grupos acadêmicos ou não, interessados nas questões Kaingang e Xokleng, que estes falantes de línguas do tronco lingüístico Jê possuem um extenso e complexo conhecimento biológico ainda por ser traduzido para os não-indígenas. Atualmente nos mestrados do Rio Grande do Sul e Santa Catarina estão sendo formados biólogos e antropólogos voltados para questões etnobiológicas desses dois grupos.

No século XX, para que os biólogos considerassem o conhecimento indígena e tratassem de aprender com os “índios”, foi preciso que se despissem dos seus preconceitos evolucionistas e descessem de suas cátedras para ouvi-los como “colegas”. Ao mesmo tempo, muitos biólogos procuraram inteirar-se das questões históricas e antropológicas para contextualizar os mais diversos problemas que afetavam suas áreas de interesse, inclusive de manejo e recomposição ambiental. No sul do Brasil, de fato, ainda não ocorreu um comportamento similar, pois muitos cientistas ainda “acham” que os povos indígenas estão completamente “aculturados”, despidos de suas tradições. É comum, mesmo sem estarem devidamente informados, muitos biólogos sul-brasileiros dizerem e escreverem que os Kaigang e Xokleng não passam de bêbados, que os Guarani são mendigos, etc., reproduzindo argumentos anti-científicos superados há um século.

Se os biólogos sul-brasileiros procurarem ouvir e aprender algo com os Guarani, Kaingang e Xokleng, tratando-os com igualdade, não precisaremos mais testemunhar cenas desagradáveis, para não dizer truculentas e que negam o avanço científico, como as que se produziram a partir do posicionamento de vários biólogos sobre a retomada Kaingang do Parque Estadual Florestal de Nonoai. Afinal, os Kaingang retornavam a um ambiente que lhes foi roubado durante o processo brasileiro de ocupação do RS, cujas informações arqueológicas e históricas demonstram que eles viviam ali muito antes dos litigantes e biólogos, sem degradá-lo.

Quanto à minha sugestão, na busca de eficientes respostas para superar os problemas de degradação ambiental, creio no somatório dos conhecimentos biológicos indígenas e científicos. Através do conhecimento indígena, diversos acadêmicos vêm aprendendo sobre os mais variados problemas de fitossociologia, ecossistemas, manejo agroflorestal, vegetais que servem como alimentos e remédios desconhecidos pela nossa sociedade, etc.

Informalmente já foram constatadas consistentes demonstrações de conhecimento biológico entre os Kaingang, Guarani e Xokleng, inclusive na relação entre elementos abióticos e bióticos. A exemplo de outros grupos com mesma origem cultural vivendo em outras partes do Brasil, oriundos dos troncos linguísticos Tupi e Macro-Jê, encontra-se as mesmas estruturas classificatórias de solos, plantas e comunidades vegetais, zoologia, acidentes geológicos, etc. Em níveis mais aprofundados, voltados para as complexidades ecossistêmicas, apropriadas entre solos e comunidades vegetais, reconhecendo com propriedade as diferentes composições de casos determinados. Também, por exemplo, em nível fitossociológico, dominam questões sobre as complexidades entre as comunidades vegetais, seus sucessivos estratos horizontais, do subsolo ao topo das copas, e qual a fauna específica de cada um desses estratos. Conhecem, também, qual a relação entre várias espécies da fauna e flora, muitas vezes, inclusive, o tipo de manejo que certos animais realizam com determinadas plantas. Além de muitos outros exemplos.

* O autor é arqueólogo/etno-historiador

Os resultados dessa cooperação, no meu entender, serão de muito proveito para os ambientes que sobrevivem e para “recriar” outros. Por exemplo, em vez de ficarem apenas questionando e ignorando as populações indígenas do sul do Brasil, por que os biólogos não descobrem os meios e recursos necessários para reconstituir os ambientes das reservas indígenas livres da agropecuária? Por que não tentam expandir estes exemplos para outras áreas? Por que não aplicam os resultados indígeno-científicos e de caboclos de reservas extrativistas brasileiras para repovoarem os ervais, pinheirais, palmitais, jaboticabais, palmerais, etc., propiciando aos Xokleng, Kaingang e Guarani possiblidades muito mais ecológicas e lucrativas para obterem seu sustento? Por que não aprendem com estes indígenas como manejar a fauna, visando o repovoamento zoológico? Ja que os biólogos e ecólogos estão ávidos para realizarem pesquisas, por que não aproveitam para explorarem cientificamente ao máximo estas riquíssimas possibilidades? Já que desejam proteger os ecossistemas não-degradados, porque não superam e ampliam sua postura tentando aumentar os ambientes que já existem e recompor novos ecossistemas?






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