AgirAzul Revista 1992-1998

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AgirAzul 12

Propriedade industrial 

Patentes: Lei Promulgada por FHC

Por David Hathaway, AS-PTA

No dia 14 de maio, o Presidente assinou, com grande alarde, a nova Lei de Propriedade Industrial, publicada no Diário Oficial da União no dia 15. A nova “Lei de Patentes" (Lei nº 9.279/96) consolida o esforço de cinco anos dos governos Collor, Itamar e FHC para entrarem na linha da globalização neste campo.

Com a versão definitiva da lei em mãos, podemos agora começar um balanço definitivo do texto e de alguns dos seus prováveis impactos para o País. Quanto aos seus aspectos mais gerais, a lei entra em vigor imediatamente para os novos direitos retroativos da indústria química e farmacêutica, e em apenas um ano para quase todos os outros aspectos (artigo 243).

O "pipeline” retroativo aprovado na nova lei provavelmente será a imposição mais cara da lei que o País terá que pagar a curto prazo, já que teremos que arcar durante alguns anos com a remessa de royalties sobre produtos que normalmente sequer seriam patenteáveis, por já estarem no domínio público (artigo 230).

Passam a ser patenteáveis todos os remédios e alimentos declarados como invenções, assim como a gama completa das modernas biotecnologias e os "microorganismos transgênicos” (artigo 18).

O INPI perde o poder de decidir sobre a conformidade de contratos de transferência de tecnologia com o interesse nacional (artigo 211), mas em compensação ganha o poder de decidir quanto à legitimidade e à capacidade técnica e econômica de empresários nacionais para fabricarem no Brasil os produtos patenteados que estiverem sendo importados por multinacionais (artigo 68, § 2º).

O empresário nacional acusado de pirataria nos tribunais verá invertido o "ônus da prova" e será considerado culpado até que ele mesmo prove o contrário (artigo 42, § 2º e artigo 206).

Um dos pontos mais controvertidos da lei sempre foi o do patenteamento de processos biotecnológicos e de seres vivos. Para entender o resultado final do texto aprovado, convém examinar os vários aspectos desta questão. A pressão da sociedade (cientistas, religiosos, ambientalistas, etc.) contra o patenteamento da vida teve o impacto de pelo menos deixar o alcance deste "direito” bem mais limitado do que era a intenção original do governo e das multinacionais.

PRODUTOS E PROCESSOS NATURAIS: Em primeiro lugar, o artigo 10, inciso IX declara não patenteáveis, por não serem invenções: “o todo ou parte de seres vivos naturais e materiais biológicos encontrados na natureza, ou ainda que dela isolados, inclusive o genoma ou germoplasma de qualquer ser vivo natural e os processos biológicos naturais".

PLANTAS E ANIMAIS: O artigo 18, inciso III, por outro lado, limita o patenteamento de seres vivos aos "microorganismos transgênicos que atendam aos três requisitos de patenteabilidade - novidade, atividade inventiva e aplicação industrial - previstos no art. 8 e que não sejam mera descoberta".

O parágrafo único deste mesmo artigo, por outro lado, define o microorganismo transgênico de modo a evitar a possibilidade de células de plantas ou animais serem consideradas também como patenteáveis: "Para os fins desta lei, microorganismos transgênicos são organismos, exceto o todo ou parte de plantas ou de animais, que expressem, mediante intervenção humana direta em sua composição genética, uma característica normalmente não alcançável pela espécie em condições naturais."

O resultado positivo, então, dos artigos 10 e 18 é que nenhum ser vivo ou processo biológico natural e nenhuma planta ou animal será patenteável, pelo menos como tal. Mas é só até aí que chegaram as conquistas neste rubro da lei.

O LIMITE DO "NATURAL”: O artigo 10, por exemplo, não estabelece um limite claro entre o que é natural e o que é invenção para seres vivos, seus componentes ou os processos biológicos que eles realizam. No caso de materiais biológicos naturais, por exemplo, poderá ser suficiente que uma empresa - além de isolá-la - simplesmente cristalize uma substância, para poder ganhar uma patente sobre esta suposta "invenção".

TÉCNICAS (deles) PATENTEADAS, RECURSOS GENÉTICOS (do Brasil) DE GRAÇA: Como o artigo 18 é o único da lei a destacar as invenções que não serão patenteáveis, a falta de qualquer menção aos processos biotecnológicos neste artigo significa que estas técnicas ficarão patenteáveis como qualquer outro procedimento mecânico ou químico. Este fato representa uma submissão política do Brasil, porque a Convenção sobre a Diversidade Biológica (assinada durante a Eco-92 e ratificada pelo Brasil e outros 150 países) garante o acesso e a transferência destas tecnologias - mesmo patenteadas - para os países que concedem acesso aos recursos genéticos da sua biodiversidade nacional (artigos 15 e 16 da Convenção).

No entanto, a política cientifica do governo deu prioridade absoluta ao patenteamento das tecnologias estrangeiras, sem tomar iniciativa alguma no sentido de estabelecer as condições para o acesso àqueles recursos (cujo valor é fundamental como matéria prima para a indústria biotecnológica global).

Sob o domínio absoluto de patentes estrangeiras, dificilmente o Brasil terá chances de usar efetivamente as biotecnologias de ponta para desenvolver seus próprios recursos genéticos.

PATENTES “VIRTUAIS” PARA PLANTAS E ANIMAIS: Além destes problemas - e ao contrário do que acreditava e desejava a maioria dos Deputados e Senadores - a nova lei só impede o patenteamento direto de plantas e animais como tais, mas deixa propositadamente abertas duas portas para o exercício indireto de patentes sobre estes organismos superiores.

Em primeiro lugar, a patente sobre um processo biotecnológico para a criação de uma planta ou animal transgênico dá os mesmos direitos sobre a planta ou animal obtido que sobre o processo patenteado em si (artigo 42, inciso II).

Por outro lado, não há limitação (ou "exaustão”) alguma sobre a patente de genes de bactérias transgênicas quando estes são transferidos por técnicas de engenharia genética para dentro do genoma de uma planta ou de um animal, fazendo com que a reprodução de plantas ou animais transgênicos implique também na reprodução (ilegal) de um gene patenteado.

Desta maneira, as plantas e os animais "não patenteáveis" pelo artigo 18 poderão ser “virtualmente" monopolizados por pelo menos duas patentes bem reais: a patente do processo biotecnológico para sua criação, e a do microorganismo transgênico usado como vetor neste processo. (Duas emendas aos artigos 42 e 43, que fechariam estas portas para patentes virtuais, foram aprovadas pela Comissão de Constituição e Justiça no Senado, mas foram rejeitadas pelo rolo compressor do governo na Comissão de Assuntos Econômicos e no plenário.)

PIPELINE PARA BIOTECNOLOGIAS: Muitos cientistas brasileiros perderão o direito de usar várias tecnologias de ponta das quais seus projetos dependem.

O impacto do artigo 229, parafraseando o próprio texto, é que aos pedidos em andamento por patentes sobre biotecnologias ou microorganismos, serão aplicadas as disposições da nova lei.

Os artigos 230 a 232 abrem exceções para que outras indústrias (farmacêutica, química, alimentos) sigam explorando livremente técnicas e produtos que agora passam a ser patenteáveis, mas não há exceção para as biotecnologias.

Os laboratórios públicos que vêm usando "gene guns", PCR e outras técnicas para as quais existem pedidos pendentes hoje no INPI, podem ir se preparando para a nova lei. Vão ter que solicitar e negociar licenças com os donos destas patentes, e pedir mais dinheiro aos órgãos públicos (já que não há investidores privados para esta área no Brasil) para começar a incluir royalties em seus orçamentos. Não há nada, inclusive, que impeça que os royalties sejam cobrados retroativamente sobre o uso já feito em laboratórios brasileiros desde a data do depósito do pedido.

Na medida em que todos os laboratórios hoje estão sendo obrigados a orientarem suas pesquisas para o mercado, a exceção para "pesquisas científicas ou tecnológicas” no artigo 43 oferece poucas possibilidades para os cientistas nacionais seguirem usando estas técnicas impunemente.

O discurso oficial só oferece como argumentos, para festejar a consagração das regras de patentes impostas pelo governo norte-americano, o fim da "pirataria" da indústria farmacêutica nacional (que nunca gozou dos incentivos e subsídios que a indústria norte-americana continua recebendo de seu governo), a suposta disponibilidade de tecnologias de ponta que seriam transferidas para o Brasil (quando a recusa norte-americana em assinar a Convenção da Biodiversidade em 1992 deixou mais do que explícito que patentes servem para preservar e não para compartilhar a dominação tecnológica) e o fim das ameaças de represálias comerciais contra as exportações brasileiras (brandidas unilateralmente pelos Estados Unidos em flagrante violação do novo acordo do GATT, cujas regras para patentes eram aceitas até pela oposição no Congresso Nacional).

Do lado da sociedade civil, porém, todas as entidades nacionais que se debruçaram para estudar e emitir opinião sobre o projeto do governo se pronunciaram claramente contra ele.

Será assim que um país ganha respeito no mundo? Em todos os cinco anos em que o projeto das patentes tramitou pelo Congresso, poucos parlamentares chegaram a entender sequer dois ou três pontos técnicos do mesmo, ou seu sentido político. A imensa maioria simplesmente votou com seus líderes de bancada. O próprio governo somente enviou ao Congresso um único quadro (o ex-ministro Celso Amorim em 1994) capaz de articular argumentos coerentes em defesa das propostas oficiais.

Na política nacional, fala-se muito em interesses ocultos, e de fato neste caso nunca ficou claro para os principais atores o verdadeiro porquê de tanta insistência oficial em se submeter às regras de Washington.

Várias das entidades que lideraram o movimento nacional contra esta lei hoje estimam que dentro de poucos anos seus impactos negativos começarão a ficar evidentes (nos preços de remédios e alimentos industrializados, na dependência e no atraso tecnológicos, etc.), e que será possível então falar da necessidade de mudar esta legislação, não só no Brasil mas em muitos países cujos líderes também entraram de olhos fechados neste jogo.

Mas, já hoje, ainda há pelo menos três outros projetos de lei tramitando pelo Congresso que dizem respeito diretamente a questões de propriedade intelectual, e onde o interesse nacional está em questão:

LEI DE CULTIVARES: O projeto foi introduzido na Câmara dos Deputados (PL nº 1.457/96) em janeiro de 1996, e com ele o governo pretende estender direitos similares aos das patentes para monopolizar as variedades comerciais de sementes agrícolas. Em junho, foi criada uma Comissão Especial da Câmara para examiná-lo, e o governo ainda reclama urgência para sua tramitação imediata. Já ameaçou inclusive publicá-lo como medida provisória, devido a sua pressa em aderir à UPOV (uma convenção internacional criada em 1961 e ainda hoje composta de apenas 30 países, quase todos industrializados).

LEI DE ACESSO AOS RECURSOS GENÉTICOS: O projeto foi apresentado no Senado Federal (PL nº 306/95) em outubro de 1995 pela Senadora Marina Silva (PT/Acre) atendendo a sugestões de organizações não-governamentais, para estabelecer as condições (comerciais e de transferência de tecnologia) pelas quais as indústrias biotecnológicas terão acesso aos recursos da biodiversidade nacional, em cumprimento da Convenção sobre a Diversidade Biológica de 1992 (da qual 140 países já são membros).

Estão sendo realizadas audiências públicas e seminários em diferentes regiões do País para discutir o projeto neste segundo semestre, nas quais órgãos oficiais, além de vários setores da comunidade científica e ONGs, estão participando ativamente da elaboração desta lei, vista por todos como muito positiva para o País.

ESTATUTO DAS SOCIEDADES INDÍGENAS: O projeto está desde o inicio da década na Câmara dos Deputados (PL nº 2.057/91), destinado a regulamentar a Constituição de 1988 no tocante aos direitos das populações indígenas, inclusive com respeito a seus direitos intelectuais sobre invenções científicas (por exemplo remédios à base de plantas medicinais). O projeto encontra-se parado na Mesa da Câmara desde junho de 1994, por absoluta falta de interesse do governo em agilizar seu andamento.

O capítulo da elaboração da nova Lei de Patentes, então, está encerrado, mas ainda há muito o que fazer para impedir outros retrocessos neste campo e, desta vez, viabilizar avanços no desenvolvimento nacional.

Revisto em 20/9/1996, pelo autor, especialmente para o AgirAzul






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