AgirAzul Revista 1992-1998

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AgirAzul 4

Opinião: 

Referência II – Ao norte do RS, um Parque Florestal foi invadido (ou reocupado?): a visão de quem trabalha com os índios

A terra indígena de Nonoai: invasão ou reocupação?

Antropóloga Lígia T. L. Simonian

Em 1992, índios kaigangues invadiram (ou recuperaram?) o Parque Estadual de Nonoai. A Secretaria de Agricultura determinou a retirada de seus guardas da área. Ao longo do ano, por duas vezes, alunos da Universidade Federal, de Porto Alegre, e representantes de algumas entidades ecológicas, visitaram a região, reunindo-se com os índios. Eles são favoráveis à intocabilidade da área de Parque, um dos mais importantes e bem conservados do Estado. Os índios propuseram policiamento conjunto com soldados da Brigada Militar, o que não vem funcionando a contento. AgirAzul como não poderia deixar de ser, acompanha o ponto de vista dos ecologistas. Mas, a título de ilustração do fato, publica o texto a seguir, que, defendendo a posição dos índios kaigangues, faz um histórico dos conflitos da região.

A decisão dos indígenas de Nonoai em recuperarem no dia 14 de fevereiro de 1992 terras e recursos que lhe forem expropriados, inclusive com o uso da força, não deveria surpreender a população gaúcha, e, muito menos, as autoridades constituídas do Estado e do País. Uma surpresa só seria inteligível se uma amnésia total tiver silenciado a memória sobre as políticas e ações anti-indígenas do Estado e da sociedade. De todo o modo, é importante lembrar que os indígenas liberados pelo cacique Penry reocuparam antes o “parque florestal de Nonoai”. Eles não invadiram o mesmo conforme tem sido noticiado, pois a área em questão e os recursos ali localizados lhes pertenciam não só por direito e preceitos constitucionais, mas também, por direitos históricos.

De fato, a ocupação da área do “parque” por parte dos índios é mais do que secular. Na década de 1840, por exemplo, os índios de Nonoai ocupavam a área compreendida entre os rios da Várzea e Passo Fundo no sentido oeste/leste, e, entre os “campos do Sarandi” e do “Bugre morto” (Parpes, 1851) até o rio Uruguay. Nesta época os campos desta área há estavam sendo invadidos pelos brasileiros e a prática da violência contra os índios era uma realidade cotidiana. João Cypriano da Rocha Loires, Rufino de Almeida Mello, Veríssimo, Manoel Forte, Manoel Fernandes, entre tantos outros, são nomes de invasores sempre citados nos documentos da época. O cacique Nonoai e seus liderados buscaram apoio junto ao governo provincial por intermédio do Jesuíta Parés e do Tte. Cel. Joaquim José de Oliveira, então diretor do aldeamento de Guarita. A área antes referida foi então identificada e demarcada por ordem do governo em 1856 (Karinri, 1975: Rave, 1856) pelo eng. Francisco Rave. Esta e outras medidas administrativas que se seguiram com vistas à proteção dos direitos dos indígenas à terra não foram respeitadas pelos invasores nem garantidas pelas autoridades constituídas.

A Lei de Terras de 1850 foi interpretada de acordo com os interesses dos grandes proprietários, os quais tiveram suas posses legitimadas pelo poder público. Ante a resistência indígena, eles pressionam, inclusive o governo estadual que seguia os preceitos conciliadores do positivismo dominante na política do PRR e, entre 1911 e 1912, procedeu a outra demarcação através da qual os indígenas recebiam algumas migalhas. O “aldeamento de Nonoai” foi então reduzido aos “toldos” de Nonoai, ao norte, e de Serrinha, ao sul (Gonçalves, 1911: 154), os quais foram demarcados com apenas 34.908 e 11.950 hectares, respectivamente.

Mas como o Estado e a elite gaúcha persistiram em defender o latifúndio e os novos processos de concentração das terras impostos pelas políticas rurais “desenvolvimentistas” da década de 1940 e seguintes, os índios foram expropriados novamente. Em 1941, os de Nonoai perderam 19.998 ha e os de Serrinha 6.623 há Ato Adm. 1941), no caso para formação de “Florestas Estaduais”, ante a ação do interventor federal Gal. Cordeiro de Farias. O governador Valter de Sá Jobim (decr. nº 658) ratificou este ato expropriatório em 1949. Ainda em 1942, os Kaigang de Serrinha perderam mais 622 há para os herdeiros do invasor Rufino Almeida Mello. Em Nonoai, aproximadamente mais de 2.000 há foram assegurados sucessivamente por agentes da SPI e da FUNAI aos posseiros Sistílio Sartoretto e Ademar Dall’Asta, mas os índios também perderam a posse da área de Taquaraçuzinho.

Tanto os Kaingang como os Guarani foram retirados à força das áreas destinadas às “Florestas Estaduais”, tendo então sofrido toda sorte de violência. Apenas os Kaingang da Aldeia Péi-Kãr, localizada no extremo oeste do dito “parque florestal de Nonoai”, conseguiram resistir, e a presença de Francisco Kañero, um índio centenário, certamente foi fundamental neste sentido. Mas eles pagaram um preço alto demais por isto: foram sistematicamente removidos com o uso da força, torturados e violentados por guardas florestais do Estado, com a anuência do SPI e depois da FUNAI. Qualquer indígena adulto desta aldeia tem presente em sua memória as imagens do terror imposto por vários anos: os que perpetraram tais ações podem ter conseguido esquecer, mas não suas vítimas.

Assim, o Estado não só não alterou suas políticas de terra como ante às reivindicações dos “sem terras”, desde fins da década de 50 e inícios da seguinte voltou a expropriar os índios, deixando muitos “sem terra”. Em 1958 (Lei 3.381) o governador Ildo Meneghetti designou as terras expropriadas dos indígenas de Serrinha para a formação da “floresta estadual”, que posteriormente foi invadida pelos “sem terra”, os quais conseguiram permissão do governo para ali permanecerem mesmo sem título de propriedade. Por isso os índios que ainda ocupavam as terras destinadas para o “toldo” em 1941 e 1949 foram, conforme muitos relembram, dali retirados à força e jogados sobre caminhões “como gado”. Os que resistiram tiveram suas casas queimadas, sendo, em sua maioria, transferidos para Nonoai. Em Nonoai 2.499 há das terras indígenas (localizadas na área do “parque florestal de Nonoai”) foram expropriadas pelo governador Leonel de Moura Brizola (proc. Secret. Estadual dos Negócios da Agricultura, 1961) e entregues pelo governador Ildo Meneghetti a trabalhadores rurais “sem terras”, local que passou a formar a “4ª secção Planalto”. Mais tarde, em 1978, os índios de Nonoai organizaram-se e expulsaram milhares de invasores, em sua maioria “sem terras”, buscando assim garantir suas posses.

Como as autoridades federais têm resistido aos contínuos e legítimos reclames indígenas no sentido da devolução das terras expropriadas, após as demarcações de 1911/1912, a reocupação ora realiza pelos índios deve ser vista, inclusive, como uma contribuição ao sistema democrático. Tal procedimentos, deverá propiciar uma definição por parte da Procuradoria da República, no sentido de garantir os direitos históricos, legais e constitucionais a tais indígenas e, ainda, detonar uma ação semelhante em relação às demais áreas reivindicadas pelos Kaingang e Guarani do RS. Eles estão, de fato, atuando no sentido de fazer cumprir o prazo definido pela Constituição de 1988 para uma solução dos problemas de terra indígena pendentes, o que são em grande número. Ademais, mesmo se os índios se sentirem obrigados a fazer uso de facões, arcos e flechas, ou (Correio do Povo, 15/02/92, pág. 1) de um revólver para intimidar a guarda florestal, sua ação ainda está aquém das violências impostas aos Kaingang e Guarani pela mesma guarda, inclusive em tempos recentes.

O que precisa ser aceito e respeitado é que os indígenas de Nonoai não tema apenas o direito ao reconhecimento de seus direitos às terras e aos recursos nelas existente. Eles também têm direito a indenização por perdas e danos, que lhes é devida pelo Estado, pelo esbulho e violência antes impostos, o que lhes impediu a posse e uso da terra e o usufruto dos respectivos recursos naturais. Mais ainda, os índios também necessitarão de assistência e recursos materiais para que os mesmos possam preservar os recursos naturais ainda existentes em suas terras. Neste caso, seria recomendável que eles pudessem escolher homens e mulheres para receberem treinamento técnico pata assumirem funções de zoobotânicos/as; como guardas florestais, como bombeiros/as, etc... Para isso o Estado deverá garantir-lhes contratos de trabalho, bem como assessoria especializada e multidisciplinar. Um tal projeto terá que ser extensivo à área indígena como um todo, a qual deveria ser transformada em Parque Indígena, conforme dispões o Estatuto do Índio (Lei 6.001/73) o que viabilizaria condições dignas de sobrevivência aos povos Kaingang e Guarani. Longe de uma utopia, tal proposta limita-se apenas a garantir o que a legislação do país propõe e que os direitos humanos exigem como mínimo a estes povos. (março 92)






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