AgirAzul Revista 1992-1998

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AgirAzul 6

As queimadas no Brasil 

O fogo no Pantanal

Por José Antônio Lutzenberger*

A viagem ao Pantanal, realizada no ano retrasado, constitui-se para mim em oportunidade ímpar para complementar informação. Aceito o desafio de contribuir com pouco de força que tenho para desencadear um processo de inversão nas tendências que ora alimentam as chamas do holocausto biológico que envolve o Brasil e, em especial, a Amazônia e o Pantanal.

Em ambos os vôos, especialmente no vôo de volta, entre a Fazenda Caiman e Campo Grande, dei-me conta da indescritível extensão e absurdo das queimadas na região.

Elas são sistemáticas e atingem o todo. Onde sobram manchas livres, é por desleixo e ineficiência, não por falta de vontade. No chão, durante as voltas que demos na fazenda, pude avaliar a dinâmica da depredação. Ela é muito mais grave do que podia imaginar e já apresenta muitos estragos irreversíveis. Encontramo-nos diante de uma paisagem em plena demolição. O ponto de não retorno está muito próximo. É um espetáculo deveras triste e desesperador. Tanto mais desesperador, quanto parece grande a dificuldade em se conseguir uma mudança de mentalidade naqueles que são os responsáveis por aquela devastação.

O fogo, especialmente quando repetido todos os anos, como ora acontece nas fazendas do Pantanal, funciona como um potente herbicida e faunicida seletivo. Algumas espécies, como as gramíneas, são favorecidas, outras sobrevivem com mais ou menos dificuldade, mas muitas espécies desaparecem de todo.

Entre as plantas, aquelas que são rasteiras e de crescimento lento, com pouca capacidade de regeneração, desaparecem de todo após poucas passagens do fogo. Por exemplo, cactáceas, tanto globosas como columnares, que constituem algumas das espécies mais interessantes e valiosas, e que já estão quase todas na lista das espécies em extinção, estão entre as primeiras espécies que desaparecem. Mais grave é o fato de serem quase todas as espécies desta família espécies endêmicas, com ocorrência em áreas extremamente limitadas. O mesmo se aplica a algumas das orquídeas, especialmente aquelas que crescem no chão ou em pouca altura. Quando o fogo devasta complexos arbustivos densos, o calor que atinge as copas é muitas vezes suficiente para torrar mesmo epífetas que se encontram até dez metros do solo – semelhante é o destino de muitas das espécies da família das bromelliáceas, tão preciosas quanto as orquídeas.

Se observarmos com atenção as espécies arbustivas e arbóreas, que aparentemente sobrevivem ao fogo, notaremos que a longo prazo, se a prática do fogo continuar sistemática, também estas estarão destinadas a desaparecer. A carbonização e calcinação do tronco, progridem até que o tronco seja destruído pelo fogo e a árvore caia, sendo então consumida pelo fogo seguinte. Muitos exemplos disso já se podem ver nesta fazenda. Nota-se que o fogo tem sido incrementado em anos recentes e mais em alguns lugares que em outros. Se continuar o ritmo atual de queimadas, o ecossistema ficará tremendamente empobrecido, chegando rapidamente a uma situação irreversível. As manchas hoje ainda mais ou menos intactas e que servem de banco genético para o repovoamento do que foi dizimado também desaparecerão progressivamente.

Quanto à fauna, a situação é igualmente grave, especialmente no que se refere a espécies menos visíveis, que o leigo não vê, por não serem espetaculares em seu aspecto ou por viverem escondidas ou terem hábitos noturnos. Entre estas temos os répteis. O caso mais trágico é o do jabuti, nossa tartaruga terrestre. Ela não tem como escapar do fogo. Se está desperta, caminhando, pastando, comendo frutas, carcaças, excrementos, não consegue caminhar com velocidade suficiente para escapar. Se está dormindo, o que costuma fazem em complexos herbáceos densos ou debaixo de folhas secas, será torrada viva igual. Outros répteis, como iguanas e, sobretudo lagartixas de pequeno porte, também não conseguem escapar do fogo. O mesmo acontece com muitas cobras e serpentes. Os anfíbios, especialmente pererecas e sapos são igualmente vulneráveis.

Todos aqueles pássaros que fazem seu ninho a pouca altura em arbustos ou em capim denso, como por exemplo o Tico-Tico e muitos Beija-Flores, que fazem seus ninhos em alturas de um a três metros, estarão completamente perdidos se na época da nidificação.

Os maiores estragos, entretanto, são causados entre os insetos. Os gafanhotos encontram melhores condições de desova em solo calcinado e mais pasto seco logo após, enquanto que outros são totalmente destruídos onde passa o fogo. Os mais vitimados são os insetos noturnos. Passam o dia escondidos em folhagem densa ou nas folhas secas sobre o solo, outros, sobre troncos, mimetizando a superfície destes. À noite, se o fogo continuar, insetos de áreas não queimadas são atraídos pelo fogo em vôo suicida.

Entre os insetos está o maior número de espécies ainda nem conhecidas pela ciência e entre eles temos também grande número de endemismos. O leigo não imagina a extensão dos estragos diretos e indiretos do fogo num ecossistema.

Numa paisagem tão extensamente devastada pelo fogo, como as que agora se vêem no Pantanal, mesmo aqueles animais que sobrevivem quando conseguem escapar às chamas, terão que concorrer com seus semelhantes nas pequenas manchas de vegetação não queimada, sobrecarregando estas. No caso de pássaros insetívoros, sua base de alimentação fica enormemente reduzida. Insetos polinizadores, abelhas, arapuãs, mamangavas, borboletas, quando sobrevivem diretamente ao fogo, podem vir a perecer pouco após por falta de recursos de néctar e pólen. O verde exuberante, que pode parecer após as primeiras chuvas depois do fogo, engana as pessoas que não têm o hábito de observar atentamente a natureza. Elas não conseguem perceber o incrível empobrecimento do ecossistema, o irreversível de grande parte dos estragos.

Por isso, se quisermos chegar a uma fazenda pantaneira realmente “ecológica”, não poderemos esperar muito para mudar de sistema. Se o fogo continuar por mais alguns anos, os estragos não serão mais reparáveis. Para chegarmos rapidamente a um novo caminho teremos que, inicialmente, procurar entender as verdadeiras causas do atual desastre.

Dois são os fatores decisivos nas cabeças das pessoas envolvidas, tanto os peões, como os próprios fazendeiros. O primeiro é a cosmovisão predominante no Brasil, uma cosmovisão que nos vem da cultura ibérica, como seu antropocentrismo cristão, agravado por quase um milênio de cultura muçulmana. Interessante é o conceito de “mato”. Enquanto nas culturas germânicas, as palavras que designam bosque, floresta, complexo arbustivo e outros, são sempre palavras de coloração emotiva positiva. “Mato” em português, às vezes “monte”, em castelhano, são conceitos de conotação pejorativa. “Mato”, para muitos, é coisa suja, feia, hostil, perigosa, indesejável, algo que deveria desaparecer. Entretanto, apesar da universalidade desta visão entre nós, ela só não desencadearia os estragos que hoje constatamos. A inércia se encarregaria de salvar muita coisa.

O verdadeiro desastre começou com aquilo que hoje designamos “progresso” e “desenvolvimento”. O pensamento básico deste novo contexto cultural faz com que queiramos sempre atingir eficiência máxima em todos os nossos empreendimentos, eficiência esta medida em termos de fluxo de dinheiro apenas, e quase nunca em termos de harmonia, sustentabilidade, integração, beleza, riqueza de vida, etc.

No caso de uma fazenda do Pantanal, se o alvo é ter o máximo de animais bovinos por área para um máximo de capital e faturamento, então, o que hoje acontece, é apenas lógico. O boi precisa de um máximo de pasto, coisa que o fogo favorece. Este favorecimento, no entanto, é a curto prazo. O fogo, além dos estragos acima mencionados quanto à fauna e flora, causa outros estragos igualmente irreversíveis para a fertilidade do solo. Além da erosão que ocorre pelo desnudamento e que pode ser considerável também para uma perda direta de nutrientes minerais. Estudos realizados em análises de cinzas e com queimadas controladas demonstram que a própria fumaça pode carregar até 60% dos nutrientes contidos na biomassa queimada. 

Da cinza que fica no chão, grande parte é levada pelas torrentes de chuva. Para termos uma idéia do grave que podem ser estas perdas, especialmente em se tratando de solos do cerrado (as áreas não inundáveis no Pantanal são solos de cerrado), que são solos muitas vezes pobres em nutrientes e com pouca capacidade de retê-los. Uma queimada, que consumisse 20 toneladas de biomassa seca por hectare, poderia levar a uma perda de até 400 kg de nutrientes minerais. A mesma ordem de magnitude de uma boa adubação mineral em forma de adubos sintéticos. A baixa produtividade da pecuária do cerrado e do Pantanal não justificam, em termos econômicos atuais, adubações desta ordem.

Portanto, o fazendeiro que quiser manter a fertilidade e produtividade de sua fazenda, que não quiser tratá-la apenas como uma mina, deverá abandonar o fogo logo que possível.


* O autor é presidente da Fundação Gaia, Porto Alegre.






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