AgirAzul Revista 1992-1998

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AgirAzul 7

Arquipélago ameaçado

Carta aberta sobre Fernando de Noronha

Por Zeno Simon*

Senhores Responsáveis pelo Distrito Estadual de Fernando de Noronha:

Introdução:

O movimento ambientalista gaúcho tem tradição na atuação transcendente aos limites estaduais. Já o pioneiro Henrique Luís Roessler ocupava-se de temas universais como os acintosos safáris no Brasil, escadas para peixes em barragens e a questão indígena. José Lutzenberger, identifcado desde o início de sua militância com a AGAPAN, levou aos foros mais sérios do 1º Mundo o ideário universal da vanguarda do movimento ambientalista, pincelando-o com tintas locais gaúchas, por meio de exemplos e estudos de caso que muitas vezes tinham como fulcro a problemática dos agrotóxicos. Mais recentemente, a UPAN (São Leopoldo, RS) e a ADFG-Amigos da Terra (Porto Alegre) prosseguiram, competentemente, com nossa tradição transfronteiriça. Muitas vezes o velho lema "Pense globalmente, aja localmente" foi substituído por outro, mais desafiador – "Pense globalmente, aja onde for possível".

Em vista dessa abrangência, também Fernando de Noronha teve a atuação de um ponta-de-lança gaúcho: José Truda Palazzo Júnior, figura importante e ativa na criação do Parque Nacional Marinho, cuja participação na Comissão respectiva está reconhecida e registrada em placa erigida no Mirante dos Golfinhos.

Mais recentemente, outros ecologistas gaúchos têm visitado o arquipélago, recolhendo impressões variadas, manifestando-se de formas mais ou menos veementes, nunca afastando-se da linha geral consonante – a saber, a preocupação com os rumos do e futuros do arquipélago.

Pode ter havido excessos em algumas manifestações, mas nunca se pode desconsiderar o "feeling" e a experiência subjacente às mesmas, nas quais, em nenhum caso, pôde-se atribuir à má-fé, irresponsabilidade ou ingenuidade dos autores.

As linhas a seguir são resultados de inúmeras observações, diálogos com muitos ilhéus e noronhenses e sobretudo analogias com situações análogas ao longo do litoral brasileiro, nas quais, desgraçadamente o turismo descontrolado e ganancioso produziu desastres.

Comprometemo-nos a colaborar com V Sas., administradores do arquipélago. de forma leal e aberta em nossa recente visita, em outubro último. O Poder Público - presentemente, o Estado de Pernambuco - tem em suas mãos um grande potencial disponível para, de um lado, construir um futuro sustentável em que as riquezas naturais do arquipélago possam ser preservadas sem prejuízo à população local; ou, de outro, para propiciar a transformação da região num lugar comum, elitizado, devastado quanto à sua paisagem agreste e peculiar, como uma Aruba ou uma Itaparica. Pretendemos contribuir para que jamais se materialize a segunda hipótese.

Srs. administradores: estas linhas não pretendem ser simpáticas nem agradáveis – leais sim, formuladas de acordo com a ética de uma facção séria do movimento ambientalista brasileiro, que procura colocar a defesa dos interesses coletivos e difusos acima dos individuais (o que não é comum na tradição cultural brasileira).


 O contexto geral

Chamou-nos a atenção a iminência de um "boom" turístico de porte sem precedentes, capaz de impactar de forma trágica toda a região litorânea do Nordeste brasileiro a curto prazo, incluindo Fernando de Noronha, caso medidas preventivas não comecem a ser tomadas já.

Os sintomas são diversos e agudíssimos. Há a recorrente "invasão argentina", cada vez mais intensa em função do descompasso das políticas econômicas que a cada ano favorece uma penetração mais longínqua e numerosa dos portenhos no território brasileiro, possibilitando-os "consumir" mais Brasil cada vez gastando menos dólares. Há o súbito esvaziamento do turismo estrangeiro outrora direcionado ao Rio de Janeiro, em função da intensa divulgação no 1º mundo dos episódios de selvageria e guerra civil não-declarada que grassam na ex-"Cidade Maravilhosa". 

Há uma crescente tendência de substituição da opção carioca, alternada invariavelmente ao "turismo exótico" na Amazônia ou Foz do Iguaçú (onde é fraca a oferta de praias) pela opção nordestina – não somente Salvador. Recife e Olinda, como também alternativas ainda mais próximas como Rio Grande do Norte, que leva vantagem de ainda conservar-se um pouco "selvagem". Fernando de Noronha encaixa-se como uma luva nesta nova opção; só temos que saudar a falta de condições do arquipélago de receber vôos "charter" da Europa, superlotados de turistas convencionais, de enorme potencial desfigurador da paisagem natural e cultural local.

No Rio Grande do Norte, tão próximo ao arquipélago, já há manifestações concretas (e preocupantes) dessa tendência. Criaram-se vôos fretados Milão-Natal, durante o verão no Hemisfério Norte, deles fazendo parte sobrevôos instigantes de Fernando de Noronha. Grande grupo francês adquiriu áreas imensas na deserta Malembá (Tibau do Sul, RN) para construção de um complexo de lazer nos moldes do Club Mediterranée de Itaparica (BA); empreendimento, aliás, arquetípico: serão fortemente afetadas matas nativas, coqueirais e as pouco estudadas condições hidro e ecológicas da Lagoa de Guaraíras, já afetada por grande desastre de origem antrópica em 1924. Não é preciso dizer que a população de Timbau do Sul (vila, aliás, destruída por aquele desastre) está magnetizada pelos empregos (muitos transitórios) que serão gerados pelo empreendimento e nem quer ouvir falar em "impacto ambiental": ai está um efeito clássico da chegada do turismo clássico, regado a dólares, no Nordeste pobre e combalido pela recessão.

Pode-se até suspeitar de urna sub-reptícia “invasão italiana". Por exemplo, em Tourinhos (Reduto, RN), praia lindíssima pouco freqüentada até mesmo pelos próprios potiguares, empresários italianos adquiriram extensas áreas junto à orla, e teriam adquirido mais, não fossem alguns conflitos com as autoridades. Inúmeros outros casos podem ser citados - subprodutos, talvez, dos vôos fretados há pouco citados.

Fernando de Noronha já recebe os primeiros impactos dessas vagas cada vez mais potentes. A situação pode ser comparada a uma jamanta que ingressa na parte mais íngreme de uma ladeira – com pane nos freios. O monstro desgovernado já joga, no mínimo, algum deslocamento de ar sobre o arquipélago: o Plano Estratégico de 1989 mencionava um número máximo ideal de 200 turistas; hoje, o número correntemente referido é 420; entretanto, já se menciona um afluxo de 600 (Jornal do Commercio, 9/10/1993). Que medidas concretas, eficazes e rápidas estão sendo tomadas para pôr um freio a essa tendência no devido tempo – isto é, agora? Não será possível frear a jamanta a poucos metros do ponto de impacto! Medidas açodadas, emergenciais ou improvisadas nunca são as melhores, sobretudo quando tomadas tardiamente, e geralmente resultam antipáticas ou mesmo nocivas à população local. E o que dizer da Resolução nº 16/90 do CONAMA? Está sendo cumprida?

As reuniões e discussões locais, saudáveis é claro, precisam receber um norte delineado e pactuado, objetivos claros, cronogramas rígidos - tudo objetivando resultados concretos e rápidos. Para isso é necessário a pactuação de algo básico e imprescindível: a missão do arquipélago. Discuti-la e decidi-la é o que falta; a situação atual, portanto, parece-nos mais tendente à discussão dispersiva ou varejista, que não está conclamando a população para um processo legítimo de cooptação (no bom sentido).

Senhores administradores: à parte das atividades típicas de "prefeitura”, que se desenrolam num plano menor, assistencialista e convencional – as quais, parece-nos, andam bem – sentimos a nítida falta de um processo dinâmico e participativo de encaminhamento dos temas cruciais ao futuro do arquipélago. Isso nos preocupa. Recantos lindíssimos do território pátrio já foram desfigurados por jamantas desgovernadas, super carregadas de interesses privados e imediatistas, ambientalmente nefastos e indutores de projetos destinados à obtenção de lucros e de poder a curto prazo às custas do patrimônio local e sem grandes vantagens à população. Um lamentável exemplo é Porto Belo (SC), outra centro internacional de mergulho como Fernando de Noronha. Os tópicos a seguir procuram subsidiar e ilustrar essa opinião.

Acesso ao arquipélago 

Pela primeira vez, observam-se condições de acesso "livre” a Fernando de Noronha. Basta arranjar-se hospedagem, passagem aérea, e pronto; chega-se ao arquipélago enfrentando-se restrição exclusivamente econômica e não física (a Taxa de Preservação Ambiental), que jamais será obstáculo ao turista recheado de dólares. Muitas agências turísticas estão, compreensivelmente, tirando partido dessas facilidades.

Argumentar que é impossível restringir o acesso abusivo de turistas ou passantes evocando, simplesmente, o “direito de ir e vir", soa como simplificação ou subterfúgio. Não defendemos a colocação de placas “ENTRADA PROIBIDA", é claro! Mas isso não significa que medidas de controle indiretas sejam impossíveis. Poderiam ser estabelecidas normas mínimas para todas as pousadas – as quais, uma vez decretadas, seriam intensamente fiscalizadas, coisa fácil de se fazer em função da exigüidade de território. Há diversas possibilidades de mecanismos econômicos: as novas pousadas (ou aquelas que se ampliassem) poderiam pagar taxas ou outros tributos progressivamente mais onerosos, por "ordem de chegada”. 

Outra possibilidade seria o aumento progressivo (por exemplo, exponencial) da Taxa de Preservação Ambiental, com valores cada vez maiores à medida que crescesse o tempo de permanência dos turistas. Poderia, alternativamente, ser criada uma "Taxa de Superlotação”, que oneraria em (por exemplo) 1000% o valor normal da Taxa de Preservação caso determinada reserva implicasse o "extravasamento" de certa lotação máxima pré-estabelecida. Isso não configuraria uma proibição, mas certamente dissuadiria alguns turistas de viajar em determinada época, induzindo-os a transferir sua estada para outro período de menor demanda. Isso exigiria um sistema integrado de controle de lotação, que poderia ser implementado com terminais de controle de lotação, que poderia ser implementado com terminais em cada pousada e/ou nas agências turísticas credenciadas. E assim por diante... Com criatividade e empenho, podem ser concebidos muitos outros mecanismos que não agridem o "direito de ir e vir”.

Também não aceitamos o argumento de que falta legislação específica para legitimar tais ações: se a administração do arquipélago está efetivamente preocupada e empenhada na solução dos problemas do fluxo turístico desordenado e crescente, é precisamente ela quem deve responsabilizar-se por propor tal legislação, encaminhada à Assembléia Legislativa como Projeto de Lei de iniciativa do Poder Executivo, emanado da Casa Civil do Governo de Pernambuco. Por que não fazê-lo já? O Sr. Chefe do Distrito Estadual certamente goza da confiança do Governador... Teoricamente, pois, não há empecilhos políticos!

Recursos Energéticos 

É surpreendente (e lamentável) a inatividade do moderno gerador a energia eólica, atribuída a problemas predominantemente políticos ou administrativos. Isso atrasa o estudo de uma solução obviamente promissora para a problemática energética do arquipélago. Também lamentamos que os projetos de moradias populares não incorporem qualquer inovação referente ao aproveitamento (ativo ou passivo) da energia solar, possibilidade interessante sobretudo para as pousadas, que poderia ser tentada em caráter piloto (lembramos aqui um projeto nesse teor desenvolvido com êxito pela PUC-Curitiba para a Companhia de Habitação local, em circunstâncias muito mais complicadas).

Enquanto isso prossegue a operação da usina termoelétrica a óleo, que além de produzir poluição atmosférica e sonora é deficitária, comburindo recursos do Estado de Pernambuco que poderiam estar sendo gastos em soluções limpas e sustentáveis, não somente energias eólica e solar, já mencionadas, como também biogás e sobretudo conservação de energia – estas últimas dando escopo a diversas possibilidades fascinantes, interferindo inclusive com políticas de transportes, iluminação pública, saneamento básico, gerenciamento de resíduos e planejamento arquitetônico/urbano.

Recursos hídricos 

A escassez de água é um problema crônico e histórico do arquipélago, relatado por quase todos os viajantes e exploradores que tentaram estabelecer-se na ilha principal, ao longo dos últimos séculos. Recentemente surgiu uma versão acerca de presumível “fartura” na disponibilidade hídrica, referente a águas subterrâneas, mas não tivemos acesso aos correspondentes estudos hidrogeológicos, alguns ainda em elaboração pela UNISINOS.

 Uma avaliação precisa e segura da disponibilidade de água doce, global e sazonal, considerado o ciclo hidrológico completo e abrangendo aspectos qualitativos e quantitativos, projetados ao longo de um intervalo de tempo suficientemente longo para permitir planos de desenvolvimento sustentável, provavelmente jamais foi empreendida. Ao menos, caso exista, não é mencionada e não é divulgada como deveria; muitos ilhéus e noronhenses influentes parecem, em geral, perplexos com relação à problemática da água e pouco sabem acerca de águas subterrâneas. 

Entretanto, quaisquer que sejam os sonhos dos ilhéus e as intenções dos administradores acerca do futuro econômico do arquipélago – mesmo que se restrinjam apenas a um ecoturismo restrito – não poderá ser dispensada, como pré-condição para o planejamento estratégico, uma avaliação com tais características, por conseguinte longa e cara. A água doce é precisamente o recurso natural limitante e, coerentemente, deve ser aquele cujo gerenciamento demandará os maiores cuidados e ônus.

Alguns moradores parecem acreditar no canto de sereia dos mega empreendedores multinacionais referente à dessalinização da água marinha de enorme impacto ambiental, consubstanciado principalmente pela grande produção de salmouras ou sais sem valor econômico.

Enquanto isso, não há nenhuma normatização ou conscientização referente à conservação e economia de água da rede e captação domiciliar de água da chuva; há uma notável carência de macro e microrreservação de água e, como já dissemos, grande desinformação sobre a real disponibilidade do recurso. Nesse ponto a COMPESA parece-nos omissa e lerda.

O uso atual das águas subterrâneas, recurso estratégico e limitado, por si só deveria suscitar atividades de conscientização, racionalização ou mesmo racionamento, atingindo prioritariamente os proprietários e gerentes de pousadas (já que o consumo "per capita” de um turista, direto ou indireto, tende a ser muito maior do que o do ilhéu).

Choca, pois, ao visitante atento à questão, o desperdício de água representado por lavagens de "buggies”, sandálias de praia e pranchas, três banhos diários, etc., rotineiros nas pousadas, sem que (nas mais das vezes) ao menos seja concebido um mínimo sistema de aproveitamento das águas servidas para o cultivo de produtos óbvios como milho e banana, em nível caseiro, para não mencionarmos o côco (vide adiante).

Resíduos sólidos 

Há controvérsias sobre a eficácia do sistema de reciclagem de lixo. Não tivemos oportunidade de conhecê-la de perto. De modo geral, todas as usinas de reciclagem do país poderiam estar funcionando melhor: ou têm aspectos falhos quanto à operação/conservação/manutenção, ou o sistema de roleta deixa a desejar, ou não há mercado para alguns produtos obtidos da reciclagem, ou ocorrem todos os problemas simultaneamente. No caso de Fernando de Noronha, em vista do pequeno porte do territ6rio e da baixa produção de lixo, há grande escopo para a coleta seletiva, que seria ainda mais facilitada em vista do alto nível de escolarização e do trabalho já bem sucedido de limpeza permanente (principalmente das praias) por todos os visitantes.

Um trabalho de conscientização visando à coleta seletiva poderia ser iniciado nas pousadas: semelhantemente ao caso da água, a produção "per capita” de lixo de um turista é muito maior do que a de um ilhéu, especialmente a de lixo limpo: latas de cerveja, frascos de água mineral, etc. Uma boa coleta seletiva favoreceria a produção de composto de boa qualidade, o qual poderia ser aproveitado em projetos-piloto energéticos ou agropecuários (vide adiante). Outra vantagem seria a provável redução da demanda de transporte de lixo; o lixo limpo pode ser estocado por mais tempo, permitindo transporte mais esporádico e o lixo orgânico seria pouco a pouco aproveitado nos quintais das moradias e pousadas, desde que houvesse a integração da coleta seletiva num projeto de ecodesenvolvimento mais abrangente.

Produção agropecuária e pesqueira 

A criação de animais econômicos de grande porte (bovinos e eqüinos), nos moldes como é praticada hoje, parece-nos predatória e inútil. Não há retorno econômico expressivo ao arquipélago pela exploração desses poucos animais, e nem mesmo dos caprinos e ovinos, que, em vista da exigüidade do território, perambulam pela ilha principal estragando a vegetação e aumentando o risco de acidentes de trânsito – além de competir com o ser humano pela água doce. Esses animais, assim como aves de corte, poderiam ser criados em regime semi-confinados, com critérios agroecológicos, integrados ao manejo de resíduos (experiência já bem desenvolvida, por exemplo, no Rincão Gaia, em Pantano Grande, RS). Ainda assim, porém, a economicidade seria discutível. De outro lado, os recursos pesqueiros parecem subexplorados, o que dá escopo a um redirecionamento das atividades dos atuais pecuaristas para a pesca sustentável, provido o devido treinamento, com vantagens: a pesca artesanal é uma atividade digna, tradicional e (quando existe o correto manejo) não suscetível aos fatores que restringem a pecuária (secas, doenças, etc.). A produção de tubalhau é um exemplo de possibilidade de exploração inteligente de recursos naturais autóctones.

Quanto à agricultura, muito já se discorreu sobre o plantio de "especiarias" (como noz-moscada), que não ocupariam áreas expressivas e teriam retorno econômico substancial. entretanto, parece ainda mais lógica a produção de itens destinados ao consumo pelos turistas. Por exemplo, chama a atenção a carência de água de côco na ilha, a que é de muito agrado aos visitantes do Nordeste, útil aos "trilheiros" e associada a diversos outros produtos extraíveis do côco que também poderiam ser vinculados ao afluxo turístico: cocada, artesanato de madeira e até carvão ativado vegetal (que poderiam ser utilizados na fabricação de água "natural" engarrafada).

 Se for concebida uma estratégica de implantação do verdadeiro ecoturismo (vide adiante), será promissora a idéia de aproveitar os cavalos para uso dos turistas, em passeios nas trilhas mais longas e até mesmo para uso d IBAMA.

 Parece-nos claro que, no que diz respeito ao necessário redesenho do perfil da atividade primária no arquipélago, à luz do critério da auto-sustentabilidade, está quase tudo ainda por fazer.

Proteção ambiental

Fernando de Noronha sofre os efeitos intrínsecos do duplo nível de jurisdição (estadual e federal_ sobre assuntos ambientais, tais como saneamento e agroecologia (Estado de PE) e proteção à fauna e flora (União). Além das dificuldades teóricas de articulação e harmonização das políticas, há aspectos práticos flagrantes - por exemplo, a total ausência do órgão ambiental estadual de Pernambuco nas áreas de ocupação humana, contrastando com a dinâmica e eficaz atuação do IBAMA nas áreas de proteção ambiental.

Tomamos, como contraponto, o bom exemplo do Instituto Ambiental do Paraná (IAP) e sua atuação na Ilha do Mel abrangendo a proteção a fauna e flora (com dois postos da Polícia Florestal, uma para cada povoado), educação ambiental, gerenciamento do lixo, etc., inclusive com credenciamento de militares de ONGs ambientalistas para apoio de principalmente no trabalho (sazonal) junto aos turistas. As atividades desenrolam-se continuamente tanto nas áreas de ocupação quanto nas de preservação, sendo nítidas as vantagens do nível único de jurisdição. Em Fernando de Noronha, é manifesto que o IBAMA "carrega o piano". A Brigada Militar pernambucana - só para darmos um exemplo - poderia participar muito mais efetivamente em uma atividade óbvia e fácil, qual seja, o apoio à fiscalização ostensiva.

Ecoturismo

Muitas vezes aventa-se o "ecoturismo" como solução salomônica, por não poluente e simpática a todos, para locais semelhantes a Fernando de Noronha. Este é um tema difícil para nós, ecologistas. Um "turista ecológico" tem, potencialmente, o mesmo impacto ambiental do que qualquer outro, sob o aspecto biológico: necessita de algum abrigo e de alimentos, produz resíduos, etc. Um número excessivo de "ecoturistas", não importa quão frugais sejam seus hábitos e nobres suas intenções, pode ser indesejável em determinada região ecologicamente sensível ou de porte diminuto.

Pode-se definir ecoturismo como um tipo de atividade turística no qual, em nome da comunhão com a natureza, ofertam-se como produtos precisamente a frugalidade e a renúncia ao conforto do turismo tradicional. Aqui, com efeito, os tipos de turismo se diferenciam. Entretanto, parece nítido ao visitante do arquipélago (principalmente o que vem do Sul do Brasil), em vista de tudo o que é-lhe alardeado principalmente por agências de turismo, que a predominância - real ou pretendida - do tipo que se pretende está na direção do turismo tradicional.

 Sobre proteção ambiental e seus desdobramentos, menciona-se muito pouco além da existência da Taxa. Badalam-se muito os passeios de barco, mergulhos, "surf", etc., e fala-se pouco ou nada sobre as restrições e limitações - inclusive referentes à água, como relatamos. Por outro lado, já na ilha, nos defrontamos com discursos que indicam que o turismo só não é mais desenvolvido e "confortável" porque o arquipélago está recém saindo de uma condição rígida de tutela. Até mesmo documentos escritos (por exemplo, o Plano Estratégico de 1989) mencionam coisas como: "melhorar os acessos" às praias; "equipar melhor" as pousadas; e assim por diante - tudo isso significando, é claro, enorme risco potencial ao Parque Nacional Marinho e aos ecossistemas do arquipélago de modo geral, inclusive os recursos pesqueiros.

Esse "clima" pouco tem a ver com "ecoturismo". Só para ficar com estes dois exemplos - equipagem das pousadas e acesso às praias - constatamos que pouco têm a ver com as propostas de preservação ambiental que defendemos. Qual o motivo "ecológico" para garantir acesso confortável a "buggies" para todas as praias? Em inúmeros pólos turísticos análogos (Ilha do Mel, Ilha Grande, Ilha de Santa Catarina, Ilhabela e outras ilhas) sempre há praias "selvagens", inacessíveis a veículos, o que aumenta seu fascínio. Certas praias da ilha principal poderiam ser reservadas exclusivamente ao "trekking", naturismo (opção simpática a expressivo segmento de turistas estrangeiros) e outras atividades cujos aficcionados dispensam o conforto e o acesso fácil. De outra parte, o que significa "equipar melhor as pousadas"? Restaurantes mais fartos? Piscinas? Roupas lavadas com maior freqüência? Tudo isso produzirá maior demanda de água, mais esgotos, mais lixo, etc.

A população local já se queixa, hoje, de prejuízos (quanto ao abastecimento de água e gêneros, por exemplo) associados ao crescente afluxo turístico, que está começando a pender para o lado predatório. Fiscais do IBAMA também se queixam de certa agência turística operando atualmente no arquipélago, cujos guias (um deles cidadão italiano) conduzem os turistas para caçadas submarinas e outras atividades proibidas. Alguns biólogos comentam que a escala do transatlântico FUNCHAL perturba enormemente a comunidade de golfinhos rotadores. Os transtornos, portanto, começam a se multiplicar.

É óbvio que nós, ecologistas, combateremos intransigentemente o “incentivo ao turismo" caso ele continue a ser conduzido nessas condições – até porque a alternativa branda e sustentável (ecoturismo) não tem qualquer mistério e pode ser desencadeada imediatamente, visto que é desprovida de gargalos tecnológicos, dependendo apenas de vontade política. Por isso, aliás, o ecoturismo destaca-se com vantagem como alternativa imediata para o desenvolvimento sustentável do arquipélago, em relação à pesca sustentável, mencionada há pouco: esta última, para ser implementada sem riscos ambientais, talvez exigisse profundas pesquisas prévias para não reincidir-se na pesca predatória.

Essa opção - ou aliás qualquer outra- está sendo preparada? A população local, expectante de novos empregos, ganhos financeiros e futuro digno para as crianças, tem consciência das opções inviáveis, conflituosas e, de outro lado, daquelas que serão verdadeiramente sustentáveis, sem risco de danos ambientais a longo prazo e portanto aceitáveis pelo movimento ambientalista nacional e internacional? O ecoturismo está sendo trabalhado junto aos turistas que afluem de várias partes do país e (logo) afluirão do exterior - e, principalmente, junto aos ilhéus, que devem saber que alternativas ecologicamente brandas não produzem riqueza material generalizada?

Srs. administradores, devemos lamentar que, de parte do Estado de Pernambuco, as respostas são um redondo "NÃO". O recente curso promovido pelo IBAMA, dirigido aos guias turísticos locais, foi uma iniciativa tardia, ainda que louvável e utilíssima - mas não partiu do Poder Público Estadual. Entendemos que este deve estabelecer como medida disciplinadora mínima um credenciamento de todos os guias turísticos atuantes no arquipélago, junto ao Departamento do Meio Ambiente e Turismo - documento que, para ser outorgado, deverá estabelecer condições prévias como a aprovação não em um, mas em vários cursos do gênero.

Neste tópico, infelizmente, também está quase tudo por fazer.


 Conclusão

Srs. administradores, é pena que devamos sublinhar, com respeito a um pedaço maravilhoso e "sui generis" do Brasil, tantas perplexidades, gargalos, omissões e principalmente carências crônicas, para as quais os Srs. parecem não estar devidamente alertas - a julgar, claro, fundamentalmente pelas ações (ou inações), não pelas palavras.

 Ressalvamos aqui alguns pontos - por exemplo a afabilidade do Sr. Domício Cordeiro, atual autoridade máxima do Distrito, que tem recebido cordialmente os ecologistas e parece-nos muito preocupado com as questões futuras do arquipélago, além de envolver-se com o provimento de alguns itens básicos pontuais (de "varejo", em nosso jargão), afins com aqueles típicos de uma prefeitura tradicional.

Entretanto, pareceu-nos que o Sr. Domício goza de impopularidade entre os ilhéus, talvez por não estar conseguindo posicionar-se de modo firme entre dois pólos opostos: as damandas da população, que ainda não foi cooptada (no bom sentido) suficientemente para engajar-se num programa de desenvolvimento sustentável efetivo, e as necessidades referentes à proteção ambiental, que exigem algumas medidas duras, imediatas e (por vezes) antipáticas.

A Administração do arquipélago deve estar consciente de que será impossível agradar a todos e que, para a maioria dos empreendimentos (sejam aqueles sugeridos aqui ou outros), integrantes de um programa de desenvolvimento sustentável, será necessária uma cooperação muito mais intensa e um aporte de recursos muito mais volumoso por parte das autoridades máximas d Estado de Pernambuco. Com isso o Sr. Cordeiro parece estar preocupado, mas de preocupações os ecologistas já estão saturados: o que vale é convertê-las em ações práticas criteriosas.

 Srs. administradores: o Estado de Pernambuco deseja, firmemente, manter Fernando de Noronha?

Os investimentos "per capita" necessários e urgentes no arquipélago, os quais, em proporção considerável, beneficiarão apenas ecossistemas naturais e pessoas de fora (turistas e passantes), são muito maiores do que os equivalentes no continente, em território pernambucano. Será que o sertanejo de Cabroró, flagelado pela seca, concordará com isso? O recifense assolado pelo brutal racionamento de água aceita os sistemas deficitários da COMPESA e CELPE? O conceito de "desenvolvimento sustentável" pressupõe uma atenção sem precedentes às gerações futuras. Hoje as crianças que concluem o 2º grau não têm qualquer opção de ensino profissionalizante (cuja ênfase deverá emanar da decisão pactuada sobre as prioridades do desenvolvimento sustentável do arquipélago), o que, para a maioria delas, significará optar (frustrantemente) entre sair ou ficar subempregadas. Mas será justo investir ainda mais em educação naquela pequena porção do território pernambucano, enquanto legiões de crianças, em outras partes do mesmo, nem sequer têm acesso ao ensino fundamental?

Esperamos que, diante de tantas considerações e preocupações, fique explicada a preocupação de inúmeros ecologistas ou mesmo a indignação dos mais exaltados, das quais derivam as manifestações pró-intervenção federal e outras do gênero.

Não chegamos a tanto – ainda. Mas parece-nos claro que, se V. Sas., que têm nas mãos uma carga imensa de responsabilidade diante dos olhos atentos dos ambientalistas do Brasil e do exterior, devem agir - bem rápido. As ameaças estão bem visíveis e seu "timing" já não permite procrastinações.

Persistindo as dificuldades atuais que desviam os rumos do arquipélago daqueles que avaliamos como corretos, passaremos, sem dúvida, a pregar a reinstauração do Território Federal de Fernando de Noronha - opinião, aliás, compartilhada por muitos ilhéus.

Atenciosamente, almejando um bom uso do presente esforço de colaboração.


*Zeno Simon é Conselheiro da AGAPAN - Associação Gaúcha de Proteção ao Ambiente Natural e Coordenador da Comissão Técnico-Científica; foi 2º vice-presidente.


Nota do Editor: A AGAPAN sugeriu e Fábio Feldman propôs emenda constitucional no sentido de fazer voltar Fernando de Noronha à órbita federal.






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