AgirAzul Revista 1992-1998

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AgirAzul 7

Agricultura ecológica 

Resgate da visão “indígena” na agricultura do branco

Por Jacques Saldanha*

Quando se tem o privilégio de ler, analisar e compreender o conteúdo dos livros que escreveram/determinaram a história da chegada/invasão no continente americano, percebe-se que passamos quinhentos anos mantendo os mesmos paradigmas da relação invasora quando lidamos com a terra/agricultura/natureza, neste espaço geográfico que nos viu nascer.

Indiscutivelmente ainda de costas para o presente e o futuro, permanecemos de frente para um passado ideológico/cultural que não é o nosso.

Mesmo constatando que são quinhentos anos de ignorância, arrogância, prepotência e incompetência, sentimentos na maioria das vezes expressados em vários níveis de inconsciência, temos ainda chances de se abrirem portas e janelas em nossa história com a terra. E isto se encontrarmos nossos companheiros de espaço geográfico que mantém sua história, sem escrita e livros, e infelizmente na maioria das vezes também inconsciente, mostrando-nos sua sabedoria milenar de convivência e integração com a Vida manifesta na natureza.

Em muitos de nós será um resgate. Em outros se houver humildade, perceberão, aprendendo/apreendendo, na visão "indígena" (autóctone), a relação cultural que expressam no processo agrícola - na convivência com a natureza tropical/subtropical/temperada deste espaço geográfico que arbitrariamente se chama Brasil.

 Mas por que considerarmos tão importante este aprendizado ou resgate, ampliando a compreensão de agricultura para convivência com a natureza?

Primeiro porque entendemos agricultura, radicalmente, como a prática de um Saber cultural quando da intervenção humana no equilíbrio das relações dinâmicas entre os seres - vivos e inanimados - em um ambiente natural. E esta intervenção se demonstra pelo privilégio que se atribui a determinadas plantas/animais que num momento histórico se define como fontes de alimentos destinados à sobrevivência da espécie humana.

Sendo então a agricultura a exteriorização de um Saber cultural, no instante em que esta intervenção é destrutiva, exterminadora, alternativa e mantenedora de um equilíbrio dinâmico e constante nas relações entre os seres - vivos e inanimados -, conclui-se que este Fazer mesmo cultural, não se origina de um verdadeiro Saber.

Em segundo porque se verifica que a prática do agricultor brasileiro nestes quinhentos anos vem deixando um rastro insidioso de erosão, degradação ambiental, desajuste permanente daquele equilíbrio dinâmico da natureza, levando-a a uma gradativa perda de sua vitalidade.

Assim este Fazer não pode representar o resultado de um Saber identificado com o espaço geográfico onde se intervém. E isto é compreensível ao se perceber que a maioria de nós está só com os pés e as mãos aqui mas tem o coração e a mente fixados noutros espaços geográfico-culturais. Nada mais lógico então de que a tecnologia agrícola, como instrumento da expansão da inteligência humana, exteriorize a falta de afeto, potencial, que se deveria externar pelo espaço físico ocupado.

Porém como se supor que estas civilizações autóctones que aparentemente nunca apresentaram excedentes agrícolas, possam ser tidas como prováveis gestadoras culturais de paradigmas destinados a gerar uma tecnologia agrícola para alimentar populações urbanas que cada vez demonstram estar mais famintas.

Independente das questões político-social-econômicas que determinam a fome no Brasil bem como das relações de propriedade ou posse que transfiguram a produção de alimentos em nosso País, é pela relação de respeito e convivência que os autóctones têm pela dinâmica ambiental onde vivem que poderemos aprender/apreender/resgatar o Saber da agricultura neste espaço-Brasil.

De uma forma intuitiva e inconsciente, foi justamente um "branco" que abriu portas e janela para percebermos que esta visão de mundo dos autóctones sempre esteve latente entre nós. A simplicidade, objetividade e principalmente a produtividade agrícola de sua tecnologia são o que destrói definitivamente, para quem tiver olhos e coração, todos os paradigmas de outras civilizações que em suas relações com a natureza, colocam-se acima da Vida.

Há dez anos, o engenheiro agrônomo Nasser Youssef Nasr, como se fosse um "Xamã" - aquele que entre os autóctones sabe o que todos sabem e sabe o que os outros ainda não sabem -, desencadeou um Saber cultural agrícola que recoloca a agricultura tropical/subtropical num patamar onde se constata que a fome entre nós é resultado da nossa incompetência afetiva. Nossas lastimáveis posturas de exilados emocionais e dissociados culturais deste espaço geográfico, tão pleno de vida e fartura, somente confirma todos os equívocos de quinhentos anos.

O espaço físico da "roça" está numa área onde há um século era abundante a Mata Atlântica e provavelmente tupiniquins e guaranis praticavam seu Saber Agrícola e milenar. O município é Cachoeiro do Itapemirim no Estado do Espírito Santo. As plantas que cultiva foram e são aquelas mais comuns e corriqueiras da mesa do brasileiro.

Mas hoje, este espaço agrícola é só mais um das centenas que se espalham por vários estados brasileiros, inclusive aqui no Rio Grande do Sul.

Do pressuposto "branco" de que a fauna e a flora são ou estão, no mínimo, equivocadas, e onde o solo responderá com biomassa somente quando a inteligência humana com suas tecnologias de dominação lhe socorrer com artifícios sintéticos, alterou-se a postura de confronto para convivência. De arrogância para observação. De prepotência para humildade.

Neste Saber resgatado/aprendido o inseto não é praga e a erva nativa não é daninha. O fungo e outros organismos não causam doenças arbitrárias/discricionárias. O solo não é um simples substrato inerte mas um organismo vivo.

A Vida de antagônica passa a parceira, de perversa e incompetente transforma-se em insumo.

Os cultivos não espelham mais o paradigma do autoritarismo, da discriminação, da excludência, do militarismo. As plantas cultivadas de batalhões arregimentados em exércitos monoculturais e pelotões idênticos, passam a conviver no dinâmico e democrático equilíbrio ambiental onde tanto a fauna como a flora autóctones têm espaço e vez para interagirem e intercambiarem entre si e com os cultivos.

Em meio a uma exuberância, não de árvores majestosas de 30 a 50 metros como dos autóctones, neste caso os cultivos se intermeiam na "floresta" de ervas e arbustos nativos. Numa pequena e suficiente clareira, cada planta é vista como se fosse uma "roça". Desfruta de seu espaço vital para crescer e produzir. E nesta interação, os altos níveis de produtividade - maiores do Brasil - das plantas cultivadas, muitas oriundas do cardápio dos "brancos", repetem a mesma produtividade de cultivos dos autóctones mas desconhecidos dos "exilados emocionais". E esta resposta não se dá só em termos de produção/produtividade mas também com maior tamanho e mesmo "qualidade de mercado".

As portas e janelas estão abertas. Reencontros com autóctones já ocorrem vide – Kaingang e Guarani no RS –. Informações escritas, fotográficas e filmadas estão disponíveis a todos. Tanto no Brasil como na Alemanha, França, Austrália, Japão e outros espaços culturais. Sem pretensão de poder e sem patenteamentos.

Assim, respirar esta lufada de concreta esperança e entrar cultural e emocionalmente nestas "roças” depende só da identidade de nossos corações e mentes com a Natureza e o Povo que nos rodeia.


* O autor é engenheiro-agrônono e membro do Núcleo Técnico Agropecuário da Cooperativa Ecológica Coolméia, Porto Alegre.






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