AgirAzul Revista 1992-1998

Todo o conteúdo editorial da publicação em papel

AgirAzul 7

O pensamento anti-ecológico 

Guia para um Poluidor Bem-sucedido

Recentemente um semanário ambientalista especializado em resíduos tóxicos chamado RACHELs Hazardous Waste News (nº 347, 22/07/93), editado pela Environmental Research Foundation de Nova Jersey, EUA, fez uma pesquisa entre seus leitores: estes deveriam se colocar no lugar de um empresário ou industrial poluidor e imaginar quais os pontos de vista, os argumentos, e as estratégias usadas para continuar poluindo sem nenhum drama de consciência, mesmo depois de anos e anos de debate sobre as conseqüências da poluição ambiental.

Após muitas dúvidas e ponderação - afinal, podemos estar colocando uma poderosa ferramenta nas mãos dos poluidores mais desavisados - resolvemos apresentar ao leitor do AgirAzul uma adaptação para nossa (triste) realidade do que foi sintetizados pelo RACHELs - um pequeno compêndio do "pensamento poluidor". 

Adaptado por Carlos Gustavo Tornquist e Zeno Simon

"Aqui é diferente. Acreditamos 

 nesses pregadores burrocológicos 

 de fim de século, com seus hálitos de 

 arroz integral, que nos condenam

 ao atraso." 

 Melvis Barrios Jr.

Caro colega empreendedor:

As sugestões e recomendações que trazemos ao seu conhecimento não são apenas propostas acadêmicas, muito menos fruto de elocubrações teóricas por parte de nossos consultores. Muito pelo contrário, foram resultado da prática nos quatro cantos do mundo. Nestes tempos economicamente bicudos, considere-as também como estratégia de sobrevivência.

A opinião pública

Como premissa básica, negue terminantemente que os problemas ambientais são reais. Isto é essencial para seu sucesso. Se a população acreditar que estamos ameaçando sua saúde ou mesmo o planeta, estaremos correndo grave perigo.

Esta idéia é tão fundamental que justifica uma campanha concertada, em várias frentes. Para concretizá-la, utilize todos os meios de comunicação disponíveis. Quanto mais sério e científico for o tom, melhor. Patrocine meia dúzia de livros e relatórios, escritos por eméritos cientistas aposentados, professores com PhDs ou consultores com algum vínculo acadêmico (não esqueça de omitir a informação de que são, antes de qualquer coisa, consultores), pondo em dúvida a crença de que nossos ecossistemas correm perigo, que pequenas contaminações por produtos químicos causem qualquer dano ao ser humano. Lembrem-se que se "consultor" deve preferencialmente ser "professor" - a opinião pública é simpática ao segundo termo e desconfiada do primeiro.

A seguir, realize seminários internacionais, mega eventos de debates sobre a atualidade como um "Fórum da Ecoliberdade" -, ou patrocine palestras com algum filósofo obscuro, economista de terceira linha ou cientista esotérico. Dê-lhes a aura de gênios universais e garanta a ampla divulgação no que forem favoráveis aos nossos pontos de vista.

Se a linha científica provar ineficiente, pelo menos poderá plantar sementes da dúvida. Qualquer dúvida, por mais insignificante que seja, confunde o público e atrasa ações mais incisivas. Por exemplo, a imprensa sempre apresentará ambos os lados de uma polêmica científica, mesmo que um lado tenha apenas 0,001 % de razão e o outro 99,999 %. Referências citando renomadas universidades e centros de pesquisa do exterior, até sábios avulsos, têm um impacto fulminante, mesmo que sejam distorcidas, inaplicáveis ou até falsas - afinal, nossos adversários não têm tempo nem dinheiro para conferir a validade e desmenti-las. Falando francamente: minta. Não que alguém deva gostar de mentir, mas às vezes, a mentira é a maneira de semear a dúvida, dividir os adversários e conquistas pontos na imprensa. Esta última raramente vai fundo nas declarações que fazemos - aceitam o que é dito pelo seu valor de face - e assim, uma mentirinha vai muito longe. E depois os desmentidos nunca têm o mesmo destaque dado à matéria original.

Mire-se no exemplo das indústrias de cigarros, que ainda conseguem indivíduos com cara-de-pau suficiente para olha direto dentro de uma câmera de tevê e dizer: "Não tenho conhecimento de qualquer evidência convincente sobre câncer causado pelo fumo". Ou consultores da indústria química que afirmem "as medidas mitigadores que estamos adotando reduzem os riscos de poluição do nosso empreendimento a praticamente zero". Em síntese, o que importa não é a verdade, mas a verossimilhança.

Procrastine o inevitável. Aprenda com a mesma indústria do cigarro, que tem evitado o óbvio por mais de 40 anos e continua faturando alto. Utilize-se da filantropia empresarial: apóie as artes e os esportes, crie bolsas de estudo para estudantes pobres, adote uma praça ou atleta, envie belos álbuns fotográficos e cartões de Natal à pessoas-chave na estrutura local do poder.

Finalmente, durante toda campanha não esqueça de taxar nossos adversários com expressões desmoralizadoras e clichês, como radicais inconseqüentes, sonhadores, desocupados, profetas do Apocalipse, xiítas, quimicófobos, neohippies, "naturebas" ou mesmo simplesmente "burros" [como Melvis Barrios Jr., ZH, Cad. Economia, 25/04/93]. Esta parte pode ser bastante divertida. Prova disso é que Millôr Fernandes e Paulo Francis gostam de exercitá-la.

A Administração Pública

Mantenha boas relações com os órgãos ambientais do governo em todos os níveis. Co-patrocine eventos na linha já exposta, doe equipamentos e encha suas bibliotecas com obras ultrapassadas e irrelevantes Quando realizar estudos de impacto ambiental, inunde-os com dados, que ocupem imensos volumes muito bem apresentados. Siga linhas metodológicas e modelos teóricos complicados e pouco conhecidos aos quais o órgão jamais esteja preparado para avaliar. Por exemplo: análise de riscos por fractais ou hidrogeologia marinha. Lembre de jamais fornecer-lhes algo que possa ser usado contra nós.

Nas visitas de inspeção ou controle mostre-se interessado nas preocupações dos técnicos, prometa realizar tudo o que for solicitado. Seja compreensivo com as eternas (e bem-vindas) "faltas de verba". Enfim, soterre-os com belas palavras, “noblesse oblige" e outras firulas. Nos bastidores, procrastine, conteste, recorra das decisões, usando argumentação sofisticada e esotérica, inacessível aos leigos.

Eventualmente poderão surgir funcionários (ou grupos deles) irreversivelmente idealistas; que não se deixam levar pelo exposto acima. aja rápido: dirija-se ao nível hierárquico superior e use de qualquer (qualquer mesmo) estratagema para neutralizar este tipo de sediação, pois se ela se alastrar, tempos difíceis virão. Evite causar demissões - elas criam mártires. Tente despachar a oposição, garantindo cedências, estágios ou cursos de longa duração no exterior, bem longe mesmo.

Claro que tudo isso são hipóteses remotas, afinal, haverá sempre um Assis Piccini*¹ para, convenientemente, assinar alguma autorização; haverá sempre algum juiz pronto para conceder uma liminar sobrepondo nossos interesses particulares aos difusos. 

O Parlamento

Invista em lobby parlamentar. Apóie candidatos dos extremos: ou extrema-direita ou extrema-esquerda. A extrema-direita via de regra somos nós mesmos, o que dispensa maiores cuidados; a extrema-esquerda acha que "ecologia é coisa de burguês", que os ecologistas causam desemprego, o que nos é muito útil. Já o centro em geral tende a ser muito equilibrado e pode, eventualmente, apoiar legislação ambiental que nos prejudique. Isto definitivamente não serve.

Garanta que nossos parlamentares empregarão constantemente um discurso "ecológico" - por exemplo, usar o termo "desenvolvimento sustentável" pega muito bem. Honrarias oficiais às organizações ambientalistas, plantio de árvores em locais públicos para marcar efemérides, sessões solenes para homenagear ecologistas, uso de papel reciclado no gabinete são procedimentos politicamente corretos e contam pontos (eventualmente votos) junto ao povo. Afinal, a causa ecológica está na moda. 

Estimule e apóie legislação ambiental inútil e impraticável. Isto desacredita ainda mais o governo, divide o movimento ecológico, desperdiça as verbas públicas para o setor, congestiona a burocracia e, melhor ainda, convence a população de que qualquer mudança ou avanço é impossível. Touché!

A Justiça

Mova ações legais dissuasivas contra pessoas e/ou grupos que defendam questões ambientais ou nos acusem de prejudicá-los, mesmo que não exista base real para ganhar a causa. Alegue lucros cessantes, danos morais, tolhimento do direito de ir e vir, etc. Claro que não poderemos silenciá-los completamente - são muito numerosos - mas aqui cabe aproveitar uma lição do Crime Organizado: nunca se trucida todos os inimigos. Apenas um processo milionário, bem divulgado, já é o suficiente para colocar na linha muito ecologista atrevido. Julgada a causa, se necessário recorrer sempre, em todas as instâncias. O sistema judiciário é bastante lerdo - e isto nos ajuda bastante.

Esmague seus adversários na justiça. Qualquer sentença favorável cria jurisprudência que poderá ser usada futuramente. Não deixe por menos: contrate os melhores advogados, aqueles nascidos de um cruzamento entre buldogues e tubarões. Não faça prisioneiros. Defenda vigorosamente seu direito inalienável de fabricar e vender qualquer produto, independente de quem ou quantos possam sentir-se prejudicados. Esta é a essência da verdadeira economia de mercado e o espírito do neoliberalismo.

A Ciência

Financie pesquisa científica, especialmente do tipo irrelevante. A opinião pública não tem a mínima noção do que é relevante. Esta iniciativa lhe conferirá uma imagem de empresário responsável e preocupado com os rumos da sociedade contemporânea. Além disso, servirá de defesa para qualquer denúncia sobre suas atividades industriais. É muito mais convincente iniciar um debate dizendo "Nossas pesquisas mostram...” do que “Não sou médico, mas minha experiência diz que...". Mas esta última introdução também funciona.

Pesquisas ultra-sofisticadas são também interessantes. Um exemplo: "aplicação da biotecnologia à destruição de resíduos organobromoclorados por bactéricas termofílicas". Ao cabo de alguns anos - e milhares de dólares - chegaremos à conclusão de que são necessárias mais pesquisas sobre o assunto antes de qualquer aplicação prática. Nesse ínterim, continuamos a aplicar nossas velhas tecnologias já amortizadas, tendo como justificativa esse nosso constante "desenvolvimento de novas tecnologias".

Jamais divulgue alguma pesquisa com resultados contrários aos seus interesses. Se esta informação vazar, garanta que são resultados temporários e inconclusivos. Imediatamente busque um novo laboratório ou pesquisador mais confiável. Este tipo de situação definitivamente não deve acontecer.

Algumas Estratégias Desviacionistas

Nestes tempos difíceis. é bastante compensador enfatizar dúvidas econômicas sobre programas e legislação ambientais. Afirme que eles vão agravar ainda mais a recessão, causar desemprego ou evitar a criação de novos empreendimentos. Isto nos garantirá aliados do lado mais inesperado - o dos trabalhadores. Sindicatos nos apoiarão sempre que usarmos "mais empregos" como argumento. Crie a dicotomia empregos x preservação ambiental. Se, mais tarde, tudo isto mostrar ser infundado, não se preocupe - ninguém se lembra destas coisas.

Levante cortinas de fumaça em torno das suas atividades causadoras de impacto ambiental. Desloque o foco das questões reais para qualquer coisa secundária. Procura-se um lugar para um aterro de resíduos sólidos? Anuncie que sua empresa está avaliando diferentes locais ao mesmo tempo. Isto dispersará os ecologistas em várias frentes, sempoder se concentrar naquele que você já escolheu previamente.

Dilua responsabilidades, diversificando alvos: esconda seus negócios sob uma teia de subsidiárias, holdings, filiais, joint-ventures, terceirizações, etc. em vez de apenas uma grande empresa. Lembre-se de Golias e transforme-se em inúmeros (outros) Davids. [mais detalhes no livro "Work of Nations", de Robert Reich]. Todas estas formas possibilitam dissimular quem faz o que para quem em nosso ramo.

Sempre que possível, evite aparecer em encontros públicos ou em qualquer confrontação direta com a comunidade. É preciso um milagre para vencer uma confrontação pública. A menos que a situação fique violenta. Jagunçagem pode parecer grosseria, mas que funciona, funciona. Numa confrontação violenta, sempre venceremos. [vide 2ª Audiência Pública referente Expansão RioCell, Porto Alegre, Fev. 1992]

Exija do governo estudos e avaliações de risco sempre que possível. É uma das melhores saídas para resolver impasses com a comunidade. Uma avaliação de risco bem escrita pode provar que virtualmente qualquer coisa é segura. São as avaliações de risco, mais do que qualquer outra ferramenta, que nos permitem continuar fazendo "business as usual". Devemos apoiá-las a qualquer custo.

Também a chamada "contabilidade ambiental” serve aos mesmos propósitos. Desvia a atenção dos aspectos qualitativos para os quantitativos, cria polêmica em torno da atribuição de valores monetários às "externalidades". Com estas sofisticações em torno das antigas análises custo-benefício, estaremos em terreno tão seguro quanto o das avaliações de risco mencionadas acima. O melhor de tudo é que o uso da "contabilidade ambiental” é intrinsecamente favorável a nós: os problemas mais insidiosos e graves (danos genéticos, contaminação em nível planetário, desaparecimento de culturas ancestrais, etc.) não são quantificáveis. Ou seja, o ônus atribuído aos nossos empreendimentos está sempre com valores muito inferiores aos reais. E pouca gente se dá conta disso.

Exija audiências públicas onde o público tenha apenas alguns segundos para falar. Melhor ainda, proponha "sessões de informações ao público" onde este só possa fazer perguntas curtas, sem permitir discursos emocionados ou contundentes. Quando for sua vez de apresentar seu caso, lance mão de toda a parafernália da tecnologia moderna ao seu alcance: show de slides, vídeos com telão, brochuras coloridas, maquetes gigantescas, simulações em computador - em suma, monte um espetáculo multimídia. Para defender sua posição, traga especialistas do exterior, que não falem português, de preferência. Lote a platéia com pessoas de sua confiança; providencie algumas belas recepcionistas em trajes ousados distribuindo material de divulgação sobre sua empresa. Resumindo, monte um circo. Desta forma, controlará todo o público presente, mantendo-se a aparência de um processo democrático. Aparentar ser democrático é importante.

Nem precisa ser dito que estes eventos devem ocorrer durante o dia, para que a maioria da população trabalhadora não possa comparecer. Tente influir sobre a pauta da audiência para que as coisas a seu favor sejam ditas antes da imprensa sair do local - repórteres sempre têm pressa e invariavelmente saem antes do fim.

Distraia a atenção sobre seu comportamento enquanto empresa. Mantenha o público se sentindo culpado pelo estilo de vida que leva.Incentive e participe de programas do tipo "responsabilidade empresarial”, "Qualidade Total", "atuação responsável”, "ISO 9000", etc. Boas políticas são a promoção de reciclagem de lixo nas escolas. projetos culturais de qualquer natureza e, principalmente, plantio de árvores. Este último item é muito importante: doe mudas sempre que puder. Muitas mudas. Só sementes não serve. 

O Macro-Cenário

Convença a opinião pública que é inútil ou ridículo trabalhar em prol de mudanças, ideais abstratos. Combata qualquer renovação. Incuta o medo de um mundo utópico que poderia vir a existir se as coisas fossem como querem os ecologistas: hordas de "verdes” barbudos e raquíticos movidos a cereais integrais, pelas ruas a entoar mantras ecológicos "a la Hare-Krishnas”, alienados da nossa Sociedade de Consumo. Crie a impressão de que nada melhor é possível. Já dizia o Dr. Pangloss*²: "Vivemos no melhor dos mundos”. É muito importante as pessoas pensarem que as coisas sempre foram como são hoje, e que sempre assim o serão.

Incentive acordos multilaterais para livre comércio, como GATT, União Européia, MERCOSUL, NAFTA, Pacto Amazônico, etc. pois são essenciais para a manutenção e a expansão de nosso controle sobre o mundo. Precisamos destes acordos. Eles proporcionam o caos diplomático e financeiro ideal para a expansão de nossos negócios. Quando causam falências e desempregos, quem leva a culpa são os governos. Quanto mais convencermos as pessoas de que o problema é o Estado, melhor... Além disso estes acordos nivelam por baixo as questões ambientais ao misturarem países nos quais o trato desses temas oscila entre o ótimo e o péssimo.

Recomendação Final

Maquie-se de verde. Repita todo dia ao acordar: “Também sou verde!”. Verde é legal, é simpático. Também é a cor do dinheiro...

Notas

*1 - alusão a Assis Piccini, Diretor Técnico da FEPAM-RS. que assinou uma "certidão" vagamente legal, autorizando a continuação das obras da Termoelétrica Jacuí I, mesmo com posição contrária dos técnicos da organização.

*2 – Vide “Candide”, de Voltaire*






© 1992-1999 / 2007/2008 / 2024  João Batista Santafé Aguiar - É proibida a reprodução total ou parcial sem permissão por escrito / por email do autor ou detentor dos direitos. AVISO LEGAL - Eventualmente, os endereços informados, tanto os convencionais, como os eletrônicos como páginas web ou endereços de emails, serão os da época da publicação, não sendo mais funcionais, não havendo qualquer responsabilidade do Editor sobre o fato. Estes textos disponibilizados no AgirAzul Revista  foram produzidos nos anos de 1992 a 1998. Pessoas citadas poderão já não representar ou participar das entidades pela qual assinaram ou deram seus depoimentos ou mesmo já terem falecido. Eventualmente na versão para www.agirazul.com.br foram corrigidos erros de grafia e aplicação da língua portuguesa, além de  realizados alguns alertas sobre informações já ultrapassadas pelo tempo.