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Judicial

Caçador é Condenado na Justiça Federal

AgirAzul publica a íntegra de condenatória - es isto é raro, infelizmente, no Brasil - contra caçador ilegal. Em certas regiões brasileiras é até difícil um caso destes chegar à justiça Federal. O fato que deu origem à condenação é descrito na própria .

Proc. nº 91.0000663-7 (RS)

O Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul, com base em auto de prisão em flagrante e outras peças informativas, ofereceu denúncia, retificada pelo Ministério Público Federal contra Delmar Fernandes, Paulo Inácio de Almeida Nunes e Sérgio Ivan de Oliveira, pelos fatos delituosos assim, descritos e capitulados.

"No dia 25 de novembro de 1989, por volta das 10 horas, na propriedade de Orlando Vargas, na localidade de Pontal, neste município (Triunfo, RS), os denunciados, em concurso de vontades e atuações, utilizando-se de armas de caça descritas em auto de apreensão de fl., caçaram três aves denominadas "maçarico", animais que fazem parte da fauna silvestre liberta, sendo contra esta proibida qualquer atividade nociva.

Para levar a cabo tal atuação, os denunciados valeram-se de um espingarda CBC, calibre 20, nº 449000, modelo 651, uma espingarda Gauge, calibre 20, nº 248530, e uma espingarda Rossi, calibre 20, nº S776094, apreendidas, além de vasta munição, igualmente apanhada, pelo que traziam consigo essas armas, sem a devida licença de autoridade.

Por fim, nessa atividade delituosa, os denunciados corromperam o menor Sandro Bitencourt Fernandes, de 16 anos, filho do acusado Delmar, com ele praticando as infrações acima descritas, vez que o rapaz acompanhava-os na caçada, carregando as aves abatidas e aderindo às condutas dos denunciados.

Destarte, incorreram os denunciados, com os seus comportamentos, na forma do artigo 29, 'caput', do Código Penal, nas sanções do art. 27, parágrafo 1º, combinado com o artigo 1º, 'caput' e parágrafo 2º, 'in fine', todos da lei 5197/67, com a modificação produzida pela Lei 7653/88 pelo primeiro fato; nas sanções do artigo 19, 'caput', do Decreto-Lei nº 3688/41, Lei das Contravenções Penais, combinado com o artigo 28 da Lei nº 5197/67, pelo segundo fato; e nas sanções do artigo 1º da Lei nº 2252/52, pelo último fato".

Os acusados viram-se soltos, mediante liberdade provisória, já no dia 26-11-89.

Depois de interrogados os réus na Justiça Estadual e de inquiridas testemunhas, deu-se o juízo processante por incompetente, determinando a remessa dos autos à Justiça Federal

O Ministério Público Federal ratificou a denúncia já oferecida, que veio a ser recebida, neste Juízo Federal, em 04-02-1991.  Pessoalmente citados mediante carta precatória à Comarca de São Sebastião do Caí, foram os acusados interrogados: Delmar Fernandes, Paulo Inácio de Almeida Nunes e Sérgio Ivan de Oliveira.

Houve a apresentação de defesa prévia por parte do acusado Delmar Fernandes, sem rol de testemunhas, ao passo que os demais acusados, a despeito de haverem constituído procurador, não apresentaram defesa prévia. Na instrução processual foram ouvidas as testemunhas arroladas pela denúncia. Na fase do art. 499 do CPP nenhuma diligência probatória foi requerida pelas partes.

Em alegações finais, o Ministério Público Federal pediu a procedência da denúncia, excluída apenas a acusação do art. 1º, par. 2º, "in fine" da Lei 5.197/67, em razão de, no caso, não haver permissão legal para a caça.

O acusado Delmar Fernandes, em suas razões finais, sustenta estar prescrita a contravenção penal do art. 19 da legislação especial, que estabelece a pena de 15 dias a 6 meses de prisão simples. No mérito, alega que não houve crime de corrupção de menor por este, seu filho, simplesmente o acompanhava, não praticando nenhum ato de caça. Requer a absolvição.

Devidamente intimado, o procurador dos acusados Paulo Inácio e Sérgio Ivan deixou fluir in albis o prazo de alegações finais, pelo que aos réus foi nomeado defensor ad hoc, prescindindo-se de intimação dos réus, uma vez que não houve renúncia, mas falta ao dever de atuar.

O defensor dativo nomeado em favor dos réus Paulo e Sérgio alega a prescrição da contravenção do art. 19 da Lei das Contravenções Penais, e, no mérito, nega o dolo, por não terem os acusados consciência de estarem a praticar ato ilícito.

Houve a certificação, negativa, quanto aos antecedentes criminais dos acusados.

Vieram-me conclusos os autos.

Tudo vem visto e examinado, fundamentadamente decidido.

De início, cumpre registrar que a prova produzida na Justiça Estadual (interrogatórios e depoimentos testemunhais) carece de validade porque se trata de incompetência absoluta, decorrente da violação constitucional de fixação da competência da Justiça Federal, de sorte que não há considerar tal prova.

A denúncia imposta aos réus a prática, em concurso de pessoas (CP, art. 29, "caput") do crime de caça de animais silvestres (Lei 5.197/67, art. 1º, "caput", "in fine", 4ª figura c/c art. 27, par. 1º da mesma lei), em concurso material com a prática do crime de corrupção de menor (Lei 2.252/54) e com a contravenção penal de porte ilegal de arma (D.L. 3.688/41, art. 19 c/c Lei 5.197/67, art. 28), sendo despicienda a referência, na capitulação, ao par. 2º, in fine do art. 1º da Lei 5.197/67 porque sem correspondência com os fatos descritos na peça acusatória.

Desde logo, descarto a apontada existência de concurso de pessoas, a vincular a conduta dos réus, eis que inexistente nexo causal entre as respectivas condutas. Certo que caçavam juntos; mas o ordinário, nas caçadas, é que cada caçador alveje determinada presa.

Ficou comprovada, pelo auto de apreensão de fls. 09, que cada um dos réus tinha uma espingarda, e todas elas e com potencialidade de disparo, conforme faz certo o laudo pericial de armas de fogo.

O mesmo auto de apreensão prova que em poder os réus encontraram-se, abatidas, três aves silvestres, conhecidas como maçaricos. Essas aves, segundo informações do IBAMA e da Fundação Zoobotânica do Rio Grande do Sul, filiam-se, no Rio Grande do Sul, a duas famílias com espécies conhecidas pela denominação "maçarico": a família Threskiornithidae e a família Scolopacidae.

As referidas informações, do IBAMA e da Fundação Zoobotânica não podem ser consideradas, na técnica do processo penal, "exame de corpo de delito" (Cód. de Processo Penal, artigos 158 e 159), mas servem suficientemente à prova da materialidade da infração do art. 1º da Lei 5.197, seja porque, nesse caso, é, em princípio, dispensável a perícia, pois não há necessidade de prova técnica para esclarecer se um animal vive naturalmente fora da fauna silvestre (FREITAS, Vladimir Passos e Outro. Crimes contra a natureza, 2º ed. São Paulo, RT, 1991, p. 76); seja ainda porque o Superior Tribunal de Justiça vem entendendo que o disposto no art. 158 do Cód. de Proc. Penal viu-se afetado pela Constituição vigente, ao resguardar serem admitidas as provas que não forem proibidas em lei (STJ, RHC 2.454-2/RN, Rel. Min. Vicente Cerniccgiaro, in DJU de 12-04-93, Seção II, p. 6085).

Com relação à autoria mesma do tipo penal - "caça" de animais da fauna silvestre, apesar de não se configurar concurso de pessoas, tenho como certo que todos os réus praticaram a conduta típica.

É bem verdade que, uniformemente, referem eles, no auto de prisão em flagrante e nos interrogatórios junto a este Juízo Federal que Delmar teria abatido um "maçarico", Paulo Inácio, dois, e Sérgio Ivan nenhum, apesar de haver dado tiros com tal finalidade. Mas "caçar" não é o mesmo que "abater". "Caçar", segundo mestre Aurélio, é "perseguir (animais silvestres) a tiro, a laço, a rede, etc., para os aprisionar ou matar: caçar veados, elefantes, etc.". Assim, não há dúvida de que os três réus "caçaram", embora apenas dois deles (segundo a versão deles próprios_ hajam abatido as aves alvejadas. Os três incidiram, pois, na conduta típica da 4º figura do "caput" do art. 1º da Lei 5.197/67 (caça de animais da fauna silvestre).

No tocante ao crime da Lei 2.252/54 (corromper ou facilitar a corrupção de pessoa menor de 18 anos, com ela praticando infração penal ou induzindo-a a praticá-la) tenho que não se configurou, pois toda a prova existente nos autos é no sentido de que o menor Sandro Bitencour Fernandes, filho do acusado Delmar, apenas acompanhava os réus, recolhendo os animais abatidos, não praticando atos de caça sem sendo induzido a tanto. Ademais, havia apenas três espingardas em poder do grupo, o que torna verossímil a versão de que o menor apenas acompanhava os réus, sem tomar parte ativa na caçada, ou a tanto ser induzido.
Ficou comprovada, entretanto, a prática pelos réus da contravenção do art. 19 da Lei das Contravenções Penais (porte de arma, sem licença da autoridade), eis que, segundo informação oficial da Delegacia de Polícia de Portão, onde residem, não possuem autorização para porte de armas. As armas, ademais, tiveram sua eficiência atestada pelo "laudo pericial de armas de fogo” de fls. 125/126, o que caracteriza a potencialidade lesiva do tipo contravencional.

Rejeita-se a tese defensiva da inexistência de culpabilidade (não teriam os réus consciência da ilicitude de sua conduta), uma vez que não se tratava de caçada episódica, dessas que se fazem inclusive com armas emprestadas: os réus eram proprietários das espingardas que caçavam. Portanto, é de se presumir que bem sabiam o que estavam fazendo, tanto mais que procuraram, por várias formas, resistir à ação policial, conforme dão conta os policiais militares Luiz Osmar Silva da Silva e José Rodrigues, que os flagraram. Finalmente, vale, no caso, a oportuna observação dos acatados VLADIMIR PASSOS DE FREITAS e Outro, na obra já citada: “Uma coisa podemos afirmar com segurança. Atualmente, mesmo nos locais mais afastados, existe uma consciência da proibição de atentados contra a fauna e a flora".

Procede a alegação de prescrição da contravenção penal, regulada pelo máximo de pena cominada (6 meses de prisão simples), uma vez que já decorreram de dois anos desde o recebimento da denúncia.

Impõe-se, pois, a condenação dos acusados como incursos nas sanções do "caput" do art. 1º da Lei 5.197/67.
Passo à aplicação da pena.

As circunstâncias judiciais do art. 59 do Código Penal não os desfavorecem: aplico a pena no mínimo legal de um (1) ano de reclusão, em regime aberto.

ISTO POSTO, julgo procedente, em parte, a pretensão punitiva da União Federal, deduzida na denúncia de fls. 03/06, com a ratificação de fls. 148v., para os seguintes efeitos: a) condenar os acusados Delmar Fernandes, Paulo Inácio de Almeida Nunes e Sérgio Ivan de Oliveira, como incursos nas sanções do art. 1º, "caput" da Lei 5.197/67, ao cumprimento, em regime aberto de um (1) ano de reclusão;  b) absolver os acusados, com base no art. 386, inciso VI do Código de Processo Penal, da imputação do crime da Lei 2.252/52 (corrupção de menor), por insuficiência de prova para a condenação; e c) julgar extinta a punibilidade dos acusados quanto à contravenção penal do art. 19 do D.L. 3.688/41, pela prescrição punitiva da União Federal, regulada pelo máximo de pena cominada, nos termos do art. 107, IV e 109, VI do Código Penal. 

Concedo aos acusados o benefício da suspensão da pena, nos termos do art. 78, par. 2º do Código Penal, por dois (2) anos, mediante a condição de, mensalmente, comparecerem ao juízo de sua residência, para informar e justificar suas atividades, proibida, durante o prazo, a freq6uência a locais de pescaria ou caça.

Decreto a perda, em favor da União, nos temos do art. 91, II, "a" do Código Penal, das espingardas e munição - instrumentos do crime - apreendidos em poder dos réus.

Pelo juízo da execução será examinada a questão da prescrição da pretensão punitiva pela pena in concreto irrogada ao réu Sérgio Ivan de Oliveira, tendo em vista a incidência do disposto no art. 115-CP.

 

Condeno os acusados ao pagamento das custas do processo, "pro rata".

P. R. I., inclusive os condenados, pessoalmente.

Porto Alegre, 21 de junho de 1993.

 

RÔMULO PIZZOLATTI, Juiz Federal da 4ª Vara/SC, em exercício na 8ª Vara/RS.