AgirAzul Revista 1992-1998

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AgirAzul 9

Caça x direitos dos animais: compromisso inadiável

Por Carlos Gustavo Tornquist

Desde o início do movimento pela conservação dos recursos naturais, antes mesmo de se organizar o Movimento Ecológico, tem sido difícil a convivência com os grupos preocupados com a vida animal, cuja origem remonta ao fim do século passado, com a fundação da Sociedade Anti‑Vivisecção da Nova Inglaterra e a Sociedade para Prevenção da Crueldade contra Animais de Massachussets nos EUA.

Porém, ao manifesto Animal Liberation, lançado por Peter Singer em 1975 nos EUA é atribuído o nascimento das organizações que defendem os “direitos dos animais”. Neste documento, o autor ironiza o sentimentalismo daqueles primeiros grupos conservacionistas, identifica os seres humanos como a “espécie‑tirana”, propondo a igualdade de direitos entre todos os seres vivos com um sistema nervoso central. 

A partir deste, digamos, referencial teórico, surgem os grupos “militantes” desta causa como a PETA — People for the Ethical Treatment of Animals (O Povo pelo Tratamento Ético dos Animais) —‑ que de tempos em tempos ganha espaço na imprensa internacional por suas “ações diretas” do tipo libertação de animais presos em lojas ou mesmo laboratórios de pesquisa, ou por passeatas e protestos contra o uso de peles como vestimenta. 

Os ativistas destas organizações abordam todas as questões referentes à vida animal sob uma ótica maniqueísta do tipo “os homens são essencialmente maus para com os animais”. Estes, por sua vez, são constantemente endeusados e defendidos inapelavelmente com frases do tipo, “caçar é imoral e aético” ou “os caçadores são sádicos que praticam a prepotência biológica”. Estes axiomas, que sustentam a argumentação dos grupos anti‑caça (ocasionalmente conhecidos entre os ecologistas como animalistas) não dão margem à solução dos graves problemas que ameaçam a totalidade da vida no planeta. Na verdade, esta postura constitui essencialmente uma religião.

Eis aí o problema: ao se encaminhar a discussão da caça para um embate de princípios ético‑religiosos, ela se eleva a um patamar abstrato. Acaba não adiantando a exposição de evidências práticas e concretas que contrariam a pregação dos animalistas sobre a caça, e que mostram haver outras formas de se preservar a vida animal ‑ por exemplo, países que permitem a caça controlada conseguiram evitar o extermínio de várias espécies, cujas populações, inclusive, em muitos casos têm até aumentado. Quando o debate fica só em princípios , a probabilidade de acordo, de negociação, é praticamente inexistente.

Entre a condenação radical da caça e a sua defesa incondicional existe um amplo leque de alternativas, sendo a mais lógica para os ecologistas aquela que aceita a caça regulamentada apenas de espécies não ameaçadas, em volume compatível com o aumento ou, pelo menos, a manutenção das populações existentes, com cobrança de taxas que revertam para o próprio sistema de pesquisa e controle dos animais silvestres. Some‑se a estas condicionantes a possibilidade de intervenção da sociedade civil organizada ‑ os próprios ecologistas, agricultores e a comunidade científica ‑ na definição de como vai funcionar e ser controlado o programa de caça regulamentada.

Mas não se pretende dizer que parte da mensagem dos animalistas não é essencialmente justa: nenhuma pessoa sensível deveria aceitar a crueldade no tratamento de qualquer ser vivo. Mesmo assim, os ecologistas sustentam que é possível caçar de forma que os animais não agonizem por horas a fio (a não‑utilização de armadilhas do tipo “leg‑hold” ou armamento inadequado). E, para quem ainda assim acha a caça inaceitável, lembramos que ela acontece na própria Natureza: a relação predador‑presa é também, na sua essência, uma relação caçador‑presa. Como um animalista veria uma onça devorando uma anta no Pantanal Matogrossense? Parece que entre os próprios animais, nosso debate já foi resolvido há muito tempo...

Há situações em que o julgamento da questão do tratamento dos animais é ainda mais complicado, como no caso das pesquisas médicas que necessitam de testes em animais vivos, para que outros sobrevivam ‑ não exclusivamente o homem, pois aqui se incluem também pesquisas veterinárias. Muitas pesquisas originalmente feitas em seres vivos, e que sofreram pressões contrárias dos animalistas, hoje se beneficiam de técnicas biotecnológicas, cujos repercussões ambientais não são bem conhecidas e trazem outras ameaças potenciais aos ecossistemas naturais. 

Talvez o melhor exemplo da diferença de postura entre ecologistas e animalistas, esteja na conhecida (e bem sucedida) campanha do GreenPeace, encetada no final da década de oitenta, que se voltou contra a matança de focas (as “babyseals”) em Newfoundland, Canadá. A campanha de mídia realizada bem poderia ter sido produzida por algum grupo animalista: mostrava foquinhas recém‑nascidas sendo trucidadas a pauladas em grande (e sádico) estilo pelos caçadores da região, frente às câmeras de vídeo, enquanto os ativistas da organização ecológica pulverizavam tinta indelével sobre outras focas, salvando‑as na medida em que suas peles tornavam‑se imprestáveis para o comércio. 

Quando a Comunidade Européia (principal mercado para o produto) baniu a importação das peles de foca, a campanha dos ecologistas do GreenPeace chegou ao fim ‑ estava assegurada a sobrevivência da espécie, ao menos em relação a esta ameaça específica. De outra parte, os animalistas prosseguem até hoje ‑ e assim provavelmente continuarão, enquanto houver ainda uma única foca sendo caçada, uma única pele sendo comercializada no mundo, enquanto ignoram os muitos outros graves problemas ambientais que afligem aquela região.

No Rio Grande do Sul, a AGAPAN ‑ usualmente vilipendiada pelos animalistas por tomar uma postura favorável à caça regulamentada ‑ move ação civil pública contra a introdução de crocodilos nilóticos, estabelecido ao arrepio da lei. Entre as medidas exigidas na ação está o sacrifício imediato de todos esses animais (caso a primeira opção, a remessa de volta ao seus rincões de origem no Zimbabwe, não seja viável), para evitar o risco de fuga desses répteis africanos para o ecossistema lagunar próximo ao criatório, onde provocariam danos inimagináveis. 

Outro caso‑exemplo mostrando que a diminuição de populações através da caça pode ser muito útil na manutenção dos ecossistemas naturais ou até na sua recuperação: nas campanhas australianas para o controle das populações de lebres, introduzidas pelos primeiros colonizadores e que causaram grandes estragos aos ecossistemas locais, foram usadas desde iscas envenenadas, tiros e até microorganismos patogênicos para diminuir as populações incontroláveis desses lagomorfos. 

E, dentro da mesma filosofia, têm havido campanhas de controle para as caturritas no Rio Grande do Sul, que se multiplicam assustadoramente devido à diminuição dos predadores ‑ esta causada preponderantemente pela destruição dos seus tradicionais locais de nidificação, não pela caça ilegal.

Uma conclusão inevitável para todos os que estão preocupados com a preservação da Vida ‑ e não só a vida animal, como os animalistas, que, aliás, em mais uma gritante contradição, mostram total desprezo pelos peixes ‑ é de que o cuidado com o bem‑estar dos animais é plenamente compatível com o enfoque que vem sendo proposto pelos ecologistas na mobilização por uma nova relação dos homens com a Natureza. Mais do que isto, é absolutamente desejável. 

Nem por isso podemos perder o fio da meada, executando o samba‑de‑uma‑nota‑só dos animalistas, sempre em torno exclusivamente da denúncia do sofrimento individual de algumas espécies animais. A grande ameaça que paira sobre todas as espécies, sem exceção, é a perda dos seus habitats, de suas mínimas condições de sobrevivência, da sua variabilidade genética, não a caça regulamentada ou a pesquisa médica com animais. Se mantivermos uma visão abrangente do que se passa com o planeta, nossas prioridades de atuação serão muito menos religiosas, mais “ecossistêmicas”, menos restritas a esta ou aquela espécie dentre a infinidade de seres que habitam o planeta.

Referências:

1. KNOX, Margareth. “The Rights Stuff”. BUZZWORM ‑ The Environmental Journal, (3) 3, Maio/Junho 1991.

2."A AGAPAN continua contra a caça indiscriminada", Sobrevivência, nº 2, Maio/Junho, 1991. pág.5.

* O autor é

vice‑presidente, licenciado, da AGAPAN ‑ Associação Gaúcha de Proteção ao Ambiente Natural.






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