AgirAzul Revista 1992-1998

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AgirAzul 9

OPINIÃO

Índigenas e áreas de conservação: a polêmica continua

Por Francisco Silva Noelli*

Escrevo em resposta a José Truda Palazzo Jr. e a todos com a mesma posição, contrária ao assentamento de índios Guarani, Kaingang e Xokleng em áreas ecologicamente preservadas no sul do Brasil. Apelo para que as atitudes ingênuas encerrem, pois enquanto prosseguir a discussão corrente, vazia de embasamento científico, nosso país seguirá firme em direção à monotonia cultural, botânica e zoológica. Adianto, porém, que sou partidário da ação radical para a preservação dos ecossistemas, bem como da autodeterminação das sociedades indígenas. 

Infelizmente, a realidade brasileira afunila negativamente o caminho para a formação simultânea de profissionais em Biologia e Antropologia (Etnobiologia), que possam traduzir holisticamente para nossa sociedade a “Biologia Indígena”. Infelizmente, para ser um “etnobiólogo” não basta apenas posicionamento político, mas anos de estudos e prática. Infelizmente não encontramos pesquisadores treinados em Etnobiologia em qualquer esquina, a exemplo dos ecologistas. 

Não se pode conceber que um ECOLOGISTA prescinda da multidisciplinaridade e de uma sólida base cultural, acadêmica ou não. Sem a consciência plena da complexidade de tudo que esteja relacionado à preservação dos ecossistemas, a curto e a longo prazo, estaremos contribuindo para um futuro incerto da biodiversidade. Não basta policiar e cercar com grades as reservas ecológicas. Evidentemente, não me esqueci que há muitos interessados na exploração absoluta de tudo que uma reserva possa oferecer.

Cientistas de algumas das instituições mais renomadas, como o New York Botanical Garden, Royal Botanical Gardens (Kew), Botanisches Institut der Justus‑Liebig‑Universität, Museu Paraense Emílio Goeldi, etc, vêm clamando pelo reconhecimento de todos os níveis do conhecimento biológico indígena. Este saber é apontado como uma das principais alternativas para desenvolver ações auto‑sustentadas, contribuindo para a manutenção da biodiversidade. Conforme a maioria, a descoberta dos tipos de impacto ambiental dos diversos povos indígenas poderá nos propiciar exemplos para manter as reservas ecológicas e “restaurar” as que já estão destruídas.

Este reconhecimento não é dos nossos dias. No século XVIII, Linneo considerava os Guaranis como os primus verus sistematicus da Biologia. Muitos cientistas brasileiros de primeira linha, a exemplo de Francisco Hoehne, Augusto Ruschi, Mário G. Ferri, Paulo Cavalcanti, etc, também apontaram à necessidade do estudo da Biologia indígena. Entre os Guaranis encontramos “verdadeiros biólogos” que mantêm o saber tradicional, como demonstraram em 1985 Carlos Gatti na Enciclopédia Castellano‑Guarani e Wilson Galhego Garcia na sua tese de doutorado Introdução ao Universo Botânico dos Kayová de Amambai. Entre os Kaingang e Xokleng, quando se pesquisar mais, deverá ocorrer o mesmo.

O modelo de subsistência Guarani obedece as mesmas regras de outros indígenas da América do Sul, com um impacto ambiental considerado de pequena escala, resultante da abertura de clareiras para instalar roças, coleta de plantas alimentícias, medicinais e para matérias primas. Há, também, a caça restrita de diversas espécies para alimentação e animais de estimação. A dieta Guarani é predominantemente vegetariana entre 60 e 70 %, sendo as carnes uma alternativa nos períodos de desequilíbrio causados por mudanças inesperadas.

Este modelo de subsistência possui um manejo econômico positivo, pois está fundamentado na renovação racional dos recursos naturais. Os Guaranis não vivem em áreas campestres ou completamente desmatadas, mas em clareiras e, o seu modo tradicional de vida, seus principais conceitos, estão relacionados ao interior das florestas. Porém, é óbvio que exploram os diferentes nichos que circundam seus territórios. O mundo sem as matas é inconcebível para os Guaranis.

Conforme as datações em Carbono 14, os Guarani viveram pelo menos desde o Anno Domini nos vales do Jacuí, do Paranapanema e muitas outras áreas do sul do Brasil. Apesar deles terem ocupado por mais de 1.500 anos áreas SEMPRE florestadas, como atestam seus equipamentos encontrados nos sítios arqueológicos, foi depois do genocídio causado pelos europeus que estes territórios “tradicionais” viraram imensas pastagens e lavouras. Junto com o extermínio, os territórios indígenas “tradicionais” encolheram até absurdos espaços de 1 hectare.

Nos últimos 500 anos o aumento da população brasileira, em detrimento dos indígenas assassinados com epidemias, guerras, escravidão e diversas formas de inviabilização cultural, não conseguiu extinguir os Guarani, Kaingang e Xokleng. Isto prova como estes povos resistem diariamente às tentativas de inviabilização proferidos pelos não‑indígenas. Para os menos argutos e ignorantes da realidade histórica e antropológica dos indígenas brasileiros, como José Truda, isto é uma prova de que eles não são “índios aculturados”. Antes de serem aculturados, são privados da materialização da sua tradição, tendo que dispor de estratégias capitalistas de sobrevivência, como a venda de cestaria, esculturas, ou trabalhar como peão, etc.

Esperando se estabelecer definitivamente em lugar propício, muitos Guaranis cultivam suas roças sem consumí‑las, apenas para reproduzir suas plantas tradicionais, algumas mantidas há milênios. Não é desnecessário lembrar que na maioria das vezes eles foram expulsos de suas terras, perdendo a maior parte de seu “banco de sementes”, de suas áreas manejadas com plantas para diversos fins, tendo que ir para áreas desconhecidas e começar do zero. Nessas áreas desconhecidas, algumas vezes reservas ecológicas, são obrigados a passar por um longo período de reconhecimento do novo ecossistema, até que sua roças dêem frutos, tendo que alterar sua dieta, consumindo mais carne e trabalhando como peão, vendendo cestaria e esculturas para obter dinheiro e complementar suas fontes alimentares. Esse desequilíbrio, sempre causado por não‑indígenas, obriga os Guaranis aumentarem o impacto sobre o ambiente para complementar a subsistência com mais plantas de coleta, mais caça e, raramente, em casos mais extremos, acabar cooptado por compradores de animais e plantas silvestres para obter dinheiro.

Na minha opinião, as áreas de preservação podem comportar concomitantemente reservas ecológicas e indígenas, desde que se descubram os meios mais realistas e eficientes para mantê‑los. É fato, que os indígenas, quando detentores autônomos de seu modo de vida, não destroem o meio em que vivem. A partir de iniciativas científicas de ecologistas, indigenistas e indígenas, se poderá chegar ao meio termo, com vantagens para todos. Muito há para ser conhecido e discutido, pois os indígenas de que falei viveram pelo menos dois milênios no sul do Brasil sem destruir os ecossistemas em que viviam. Enquanto que nós, descendentes dos que imigraram para cá nos últimos 500 anos, contribuimos diariamente para a destruição e para o manejo negativo dos ecossistemas naturais. 

* O autor é Arqueólogo e Etno‑historiador.






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