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URUGUAI

Reforma constitucional garante a água como um bem de domínio público

1º novembro 2004

Montevidéu, Uruguai — O Uruguai deu um passo singular no mundo ao aprovar uma reforma constitucional que define a água como um bem de domínio público e garante a participação da sociedade civil em todas as instâncias de gestão dos recursos hídricos do país. Paralelamente à eleição do novo Presidente da República, os uruguaios se pronunciaram no domingo a favor de constar da Carta Magna que "a água é um recurso natural essencial para a vida" e que o acesso a ela e a todos os serviços de saneamento são "direitos humanos fundamentais". O plebiscito, impulsionado pela Comissão Nacional de Defesa da Água e da Vida, integrada pelo sindicato da empresa estatal de água e saneamento e por vários grupos da sociedade civil, conseguiu o apoio de 60% do eleitorado.

Para sua aprovação era necessário o apoio da metade mais um dos votantes. O ganhador das eleições presidenciais de domingo, Tabaré Vázquez, da coalizão esquerdista Encontro Progressista-Frente Ampla (EP/FA), foi um dos incentivadores da reforma. A iniciativa popular, única no mundo, assentou "um precedente histórico na defesa da água, através de sua inclusão na Carta Magna de um país pela via democrática e direta", afirmaram 127 organizações de 36 países que enviaram uma carta de apoio à comissão. Estes grupos destacaram que a reforma uruguaia "garante a defesa da soberania sobre um recurso natural diante de investida das companhias multinacionais".

Entretanto, a maioria da população desconhece os alcances da mudança na qual votou, segundo as pesquisas, e o novo parlamento eleito no domingo deverá elaborar uma legislação que defina os mecanismos de sua aplicação. A partir de agora, os serviços públicos de abastecimento de água para consumo humano serão prestados no Uruguai "exclusiva e diretamente por pessoas jurídicas estatais", e serão canceladas todas as concessões na matéria feitas a empresas privadas. As mais afetadas são as companhias de capital espanhol Uragua e Águas da Costa, que fornecem serviço de água potável no departamento de Maldonado.

Esse ponto foi o que motivou as principais críticas do governante Partido Colorado, de empresários e alguns setores do centro-direitista Partido Nacional, que rejeitaram a iniciativa argumentando que "afugentará investimentos" e "habilitará expropriações ao estilo de outros regimes estatais autoritários". Mas tanto Vázquez quanto o senador Danilo Astore, seu futuro ministro da Economia, garantiram durante a campanha eleitoral que a lei não tem caráter retroativo, e deram a entender que não seriam afetadas as empresas espanholas. De fato, ambos se esforçaram para levar tranqüilidade às companhias desse país durante visita que realizaram à Europa.

Astori admitiu que não há visões contraditórias entre juristas do EP/FA, e que tudo se resolveria com uma legislação esclarecedora, enquanto o presidente eleito disse a empresários durante a campanha que a reforma não afeará as empresas estrangeiras. "As consultas jurídicas que fizemos dentro de nossa força política estabelecem que os critérios, aprovada esta reforma, não são retroativos por razões óbvias, mas daqui em diante", disse Vázquez. "Assim, o cumprimento dos compromissos assumidos não tem que ser apenas por parte do Estado uruguaio, mas, também, por parte das empresas que assumem esses compromissos’, acrescentou. Entretanto, membros da Comissão e da própria coalizão esquerdista destacaram que, segundo a norma, serão suspensas as concessões para todas as companhias.

"A discussão sobre a retroatividade é capciosa. O conceito de retroatividade não tem nada a ver com o texto. Simplesmente, uma vez aprovada a reforma, caem as concessões vigentes", explicou à IPS o delegado da Frente Ampla na Comissão, Carlos Cotiño. Por sua vez, o jurista Guillermo García Duchini, co-redator do projeto de reforma, disse á IPS que o "resgate das concessões" por parte do Estado já está previsto no próprio contrato de concessão, quando se estabelece que estas serão suspensas caso estejam contra o interesse público. E este é o caso da reforma, explicou Duchini, já que esta estabelece que os recursos hídricos do país fazem parte do domínio público, e que por isso sua gestão "deverá ser feita colocando as razões de ordem social à frente das de ordem econômica". Ao suspender-se as concessões, as empresas serão indenizadas, não pelo lucro cessante, mas apenas pelos investimentos não amortizados.

A direção, organização e exploração dos recursos hídricos ficam a cargo da empresa Obras Sanitárias do Estado (OSE), embora possa, em algum momento, passar para as prefeituras, afirmou Duchini. Algumas obras em particular, como de manutenção, podem ser licitadas, mas a OSE não perderá a gestão nem "o contato direto com o público". María Sleva Ortiz, integrante da Comissão e da organização não-governamental ambientalista Redes-Amigos da Terra, explicou à IPS que a reforma não afeta as engarrafadoras de água mineral, as fábricas de refrigerantes nem os estabelecimentos turísticos com águas termais que não são abastecidas pela OSE. Estas empresas extraem por si mesmas água subterrânea, de rios, mananciais e riachos com a permissão do Ministério dos Transportes e Obras Públicas, e continuarão operando assim enquanto não houver uma "superexploração".

"A concessão à Uragua cai por descumprimento do contrato, e a de Águas da Costa por não ter priorizado o interesse social antes do econômico. É certo que não há retroatividade, a questão é que a partir da aprovação da reforma a atividade destas empresas passa a ser inconstitucional", afirmou Ortiz. Águas da Costa pertence à espanhola Águas de Barcelona, que por sua vez é filial da francesa Suez-Lyonnaise des Eaux. Desde que se instalou em Maldonado em 1991, as tarifas de serviços passaram a ser sete vezes maiores do que no resto do país. Uragua, propriedade das firmas espanholas Cartera Uno, Ivberdrola e Águas de Bilbao, atende o fornecimento de água potável das cidades de Maldonado, Punta del Este e Piriápolis.

Em janeiro de 2002, em plena temporada turística, a OSE recomendou à população de Maldonado que fervesse a água distribuída por essa empresa espanhola antes de ingeri-la, pois haviam sido detectados coliformes fecais. A reforma também estabelece que "os usuários e a sociedade civil participarão de todas as instâncias de planejamento, gestão e controle dos recursos hídricos, estabelecendo-se as bacias hidrográficas como unidades básicas". A norma "vela pela participação do usuário e da sociedade civil na administração dos recursos hídricos. Os projetos de autogestão por parte dos usuários que há em alguns pontos do Uruguai estão de acordo com a reforma", disse à IPS a vice-presidente da Federação de Funcionários da OSE, Adriana Marquisio. Ativistas estimam que em alguns anos algumas poucas empresas no mundo controlarão quase 75% da água usada para consumo humano.

As principais empresas são as francesas Vivendi-Générale des Eaux e Suez Lyonnaise, que controlam 40% do mercado e fornecem serviços a cerca de 110 milhões de pessoas em mais de cem países. O Fundo Monetário Internacional e o Banco Mundial dedicam-se a fomentar a privatização da água no Sul em desenvolvimento, colocando isso como condição para conceder seus empréstimos, disse a ativista canadense Maude Barlow em seu livro "O ouro azul", que apresentou no mês passado, em Montevidéu. "A concentração do poder em mãos de uma única empresa e a incapacidade dos governos em recuperar os domínios dos serviços de fornecimento permitem às companhias impor seus interesses sobre o governo, reduzindo, assim, o poder democrático dos cidadãos", disse Barlow. Nesse contexto, a reforma aprovada no Uruguai marca um precedente mundial.

Por Raúl Pierri - IPS/Agência Envolverde.


Última atualização: 06 setembro, 2011 - © EcoAgência de Notícias - NEJ-RS e PANGEA
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