Considerações e perspectivas sobre o surfe em uma Reserva Ecológica marinha

Os impactos ambientais do jet-ski na Ilha dos Lobos, em Torres, RS

por Adriano Becker, Fotógrafo e jornalista free-lance
Amigos da Terra - Brasil - www.natbrasil.org
para a EcoAgência de Notícias

 

A notícia da maior onda do Brasil é motivo de apreensão e polêmica quanto à dimensão ambiental do fenômeno, já que ele ocorre exclusivamente nos arredores ou dentro da Reserva Ecológica Ilha dos Lobos, a menor do Brasil. A preocupação é centrada no fato de que, nos dias de grandes ondulações, o surf na ilha tem sido realizado através do tow in, ou seja: até hoje, os surfistas – inclusive os mais renomados campeões em ondas grandes - conseguiram descer as vagas descomunais somente com ajuda de jet-skis, que os rebocaram até entrarem nas ondas, antes delas quebrarem bruscamente sobre a rasa bancada de pedras situada a quase 2 quilômetros da costa em Torres.

Os impactos ambientais do uso de jet-skis são óbvios: os veículos largam combustível e/ou óleo no mar, produzem forte odor e podem comprometer as ovas de peixes pelo movimento de água, sem falar na poluição sonora e no risco de colisão com a fauna. Esses fatores se agravam no caso do tow-in em frente à Ilha dos Lobos, pois é a única ilha marítima do Rio Grande do Sul, constituindo o limite norte da distribuição das colônias de lobos e leões marinhos na costa atlântica da América do Sul (Vaz-Ferreira, 1965).

Anualmente, os mamíferos migram de seus centros reprodutivos no Uruguai e Argentina em busca de descanso e alimento na ilha, compartilhando-a com golfinhos, baleias e diversas espécies de aves. O local apresenta, ainda, significativa variedade de inverterbrados e peixes que pode ser comprometida com a invasão de veículos motorizados.

As peculiaridades ambientais do local justificam medidas específicas para a sua proteção. O IBAMA, órgão responsável pela reserva, proíbe a aproximação humana no raio de 500 metros da ilha, com exceções a pesquisas científicas e atividades de educação ambiental. Contudo, o cumprimento efetivo dessas normas muitas vezes não acontece, repetindo a realidade na maioria das Unidades de Conservação brasileiras.

Os órgãos encarregados pela proteção ambiental no Brasil enfrentam precariedade notória.. Seja no combate ao desmatamento ou na gestão de recursos pesqueiros, por exemplo, o IBAMA sempre trabalhou com escassez de verbas, pessoal e de infra-estrutura básica. E ainda encontra-se freqüentemente encurralado entre o dever de zelar pelo patrimônio ambiental e os anseios imediatos das populações humanas que demandam o uso dos recursos naturais, geralmente de forma predatória, pela falta de conhecimentos sobre sustentabilidade, entre outros motivos.

A conservação ambiental na Ilha dos Lobos e em seus arredores é ou foi diretamente ameaçada por ações como a coleta de mariscos, pesca, invasão por barcos de turistas e pela poluição do mar, sendo que o abate de leões marinhos por pescadores também faz parte da história da ilha. Os trabalhadores tentavam evitar prejuízos com a destruição de suas redes pelos animais que as perseguem em busca dos pescados em suas malhas.

Todos esses aspectos devem ser considerados quando se discute o surfe nas imediações da Ilha dos Lobos. A biologia da conservação, disciplina dedicada à manutenção de ecossistemas, espécies e processos ecológicos, ensina-nos que devemos analisar os problemas abordados sob perspectivas contextualizadas, no sentido de prever cenários resultantes de determinados procedimentos, para então podermos tomar as decisões de acordo com as opções que parecerem mais ou menos adequadas.

No caso do surfe na ilha, pode ser exigida a simples continuidade da proibição. Nessa hipótese, é previsível que o problema continue, pois os surfistas de ondas grandes dificilmente iriam desisitir da onda, mesmo sujeitos a penalidades pela transgressão à lei, enquanto os fiscais do IBAMA local iriam seguir no esforço (que poderia ser direcionado a outras tarefas) de autuar os infratores. O ambiente, por sua vez, seguiria impactado, com pouca ou nenhuma compensação pelos danos sofridos.

Outra opção poderia, talvez, ser a permissão ocasional da prática limitada do esporte ao redor da ilha, após a realização de estudos técnico-científicos que avaliassem a viabilidade da atividade do ponto de vista ambiental, bem como de que maneiras os impactos negativos poderiam ser evitados e compensados, inclusive pelo pagamento de taxas por parte dos surfistas e empresas relacionadas ao esporte. Os recursos obtidos com os tributos poderiam ser aplicados na gestão da reserva e, por que não, em programas sociais direcionados aos pescadores e às comunidades carentes de Torres. Nada mais justo, considerando que a indústria do surfe obtém seus lucros graças ao oceano e suas ondas.

Essas medidas, entretanto, só seriam possíveis com a mudança de categoria de Unidade de Conservação em que está enquadrada a Ilha dos Lobos: de Reserva Ecológica, que proíbe qualquer ação humana na unidade, exceto as de cunho científico e educacional, a ilha passaria a Refúgio de Vida Silvestre, que possibilita outras atividades, desde que não comprometam os objetivos conservacionistas da unidade e que estejam de acordo com as regras estabelecidas no seu Plano de Manejo. Já as taxas cobradas precisariam ser aplicadas localmente, ao contrário de serem diluídas no “caixa único” do IBAMA .

Se, por um lado, a fauna da Ilha dos Lobos é, no mínimo, importunada pelos surfistas e suas máquinas, por outro, a sua proteção poderia ser garantida de forma mais efetiva se parcerias e pactos fossem firmados entre as partes envolvidas – surfistas, ambientalistas, pesquisadores, pescadores, fiscais e políticos locais -, com o objetivo de colaborar na conservação da reserva.

De qualquer maneira, é necessária a realização de amplas e francas discussões sobre o tema, com posições e comprometimentos assumidos publicamente, partindo do fato inegável de que a ilha, antes de paraíso do surfe, é e deve continuar sendo dos lobos e leões marinhos, além das outras criaturas que habitam ou utilizam o aglomerado de rochas basálticas resultante de derrames vulcânicos ocorridos há cerca de 200 milhões de anos.

 

Referência:

Sanfelice, D. & Vasques, V.C & Crespo, E.A – Ocupação Sazonal por Duas Espécies de Otariidae (Mammalia, Carnivora) da Reserva Ecológica Ilha dos Lobos, Rio Grande do Sul, Brasil. Iheringia – Série Zoologia. Museu de Ciências Naturais, Fundação Zoobotânica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 1999.