Matéria
publicada no AgirAzul 10 - 1995
AGRICULTURA ECOLÓGICA
por Luis Fernando Wolff*
É necessário esclarecer que existem diferenças entre a agricultura
tradicional e a agricultura praticada atualmente. Chama-se agricultura
tradicional o conjunto de técnicas de cultivo que vem sendo utilizado durante
vários séculos pelos camponeses e pelas comunidades indígenas. Estas técnicas
priorizam a utilização intensiva dos recursos naturais e da mão-de-obra direta.
A agricultura tradicional é praticada em pequenas propriedades e destinada à
subsistência da família camponesa ou da comunidade indígena, com a produção de
grande variedade de produtos.
Desde o final da Segunda Guerra Mundial teve início um processo de declínio
da agricultura tradicional praticada até então. Na década de 60, começa a ser
implantada uma nova agricultura, chamada moderna, que se caracteriza pelo
grande uso de insumos externos, utilização de máquinas pesadas, mau manejo do
solo, uso de adubação química e biocidas. A agricultura moderna existe há
poucos anos e já demonstra o colapso de suas técnicas. Desta forma, não pode
ser considerada uma agricultura de fato sustentável, ao contrário da
agricultura tradicional, que tem centenas de anos de história e
sustentabilidade a longo prazo.
O termo mais adequado para denominar a agricultura praticada atualmente é
agricultura moderna, convencional, química ou de consumo. Esta agricultura teve
origem a partir de modificações na base técnica da produção agrícola, o que se
chamou de modernização, e apresenta conseqüências que demonstram sua
insustentabilidade.
O consumo exagerado de insumos externos, ou seja, insumos de fora da
propriedade ou de sua região, geralmente são de alto custo e causam a
dependência financeira, tecnológica e biológica do produtor. A produção destes
insumos não passa pelo produtor e não é influenciada por ele, gerando a
dependência financeira e a dominação do fornecedor. Da mesma forma, sua
aplicação não é de conhecimento e controle do produtor, de onde vem a
dependência tecnológica e, junto com ela, a biológica, no que se refere à
manipulação genética e uso de microorganismos.
As sementes tradicionais, que eram selecionadas e utilizadas pelos
camponeses ano após ano, estão se perdendo. Hoje, existe apenas uma pequena
variedade de plantas em que se consegue obter a mesma produção a cada safra. Em
geral, o produtor não consegue mais utilizar a mesma semente, tem que adquirir
outras variedades e usar novos insumos. É o que acontece com a semente híbrida,
que exemplifica a típica ideologia da agricultura moderna: o consumo
permanente.
Na agricultura moderna, tudo que é produzido de dejetos, efluentes ou resíduos
é lixo. Estes subprodutos são depositados na natureza, causando grande impacto
ambiental. Esta maneira de pensar consumista é uma concepção muito nova,
moderna, destruidora, não-regenerativa que reflete a falta de harmonia entre
homem e ambiente e a despreocupação com o todo. O mesmo acontece nas
cidades. A área onde são construídas as cidades é a mesma em que são colocados
os dejetos produzidos por elas. Isto significa o homem poluir a si mesmo.
A utilização de máquinas pesadas também faz parte da ideologia da
agricultura moderna. Quanto maiores forem as máquinas, mais tecnologia e status
representam. No entanto, estas máquinas têm um alto custo e exigem
financiamentos que causam o endividamento do produtor agrícola. Isto não é
sustentabilidade. Outro inconveniente do uso de máquinas pesadas é o grande
impacto na estrutura do solo e o afastamento do agricultor da terra.
A desestruturação do solo causa a pulverização e compactação da terra. Já o
afastamento do agricultor da terra faz com que se perca o contato com a mesma,
o diálogo com a natureza e a observação das plantas e animais. Além disto,
também possui conseqüências sociais, como a migração do colono para as cidades
por causa de financiamentos que acabam comprometendo a propriedade.
O mau manejo e o uso intensivo do solo também provocam desestruturação. Na
camada mais superficial, o solo fica desintegrado, pulverizado. Na camada mais
profunda, o solo fica compactado pelo uso sistemático de máquinas pesadas. Com
o tempo, forma-se uma camada dura e compactada embaixo da terra e uma camada
fofa e pulverizada em cima, que, teoricamente, seria o ideal para receber a
semente. Estas condições, aliadas à chuva, causam o deslocamento do solo —
também chamado de perda de solo anual —, a dificuldade de penetração e fixação
das culturas, a dificuldade de trocas químicas, a dificuldade de absorção de
água e oxigênio e a intoxicação ou eliminação total da microvida. Este é o
custo ambiental da agricultura moderna e do mau manejo do solo.
A adubação química pesada, de alto custo, causa o desequilíbrio fisiológico
da planta, o desequilíbrio ecológico do solo e a dependência do agricultor. As
plantas possuem um mecanismo de resistência a “pragas” — o termo correto seria
“insetos com fome” (Teoria da Trofobiose, de Francis Chaubossou) — que se
baseia em seu equilíbrio fisiológico.
As plantas equilibradas não são boas hospedeiras ou bons alimentos para
bactérias, fungos, vírus, insetos, nematóides, ácaros. Isto ocorre porque estas
plantas apresentam em sua seiva proteínas complexas que não podem ser
desdobradas por estes organismos pela falta de enzimas necessárias para a
quebra das cadeias de proteínas. Já as plantas desequilibradas por estresse,
por aplicação de produtos químicos, por variações de clima, por inadequação da
espécie à região, são bons alimentos, pois possuem menor capacidade de
metabolização dos aminoácidos livres para transformá-los em proteínas
complexas. Desta forma, o inseto dito “praga” tem condições de evoluir, já que
os aminoácidos livres são alimento para ele.
O desequilíbrio biológico do solo, causado pela utilização de produtos
químicos, afeta microorganismos responsáveis pela disponibilidade de nutrientes
importantes para a planta que não consegue absorvê-los através de suas raízes.
Desta forma, não existe a colaboração de microorganismos do solo para
processamento da matéria orgânnica. Esta microvida está sendo sistematicamente
eliminada. Além disso, quando o agricultor trabalha com adubação química
constante, cria a necessidade cada vez maior de utilização de nutrientes
químicos, ocorrendo sua dependência econômica e cultural.
O uso freqüente e intensivo de biocidas (herbicidas, inseticidas,
acaricidas, nematicidas, fungicidas) é uma prática de conseqüências bastante
graves. Os adeptos da agricultura moderna não gostam deste termo, mas, na
verdade, os biocidas são produtos que matam a vida. Alguns matam ervas,
insetos, ácaros, mas se o homem entra em contato com estes produtos também
acaba morrendo ou tendo doenças como câncer e degenerações genéticas.
O que fica bem caracterizado dentro do modelo de agricultura moderna é a
dependência tecnológica e cultural. A cultura agrícola camponesa, tradicional,
vai se perdendo com o tempo, principalmente com o desrespeito ao agricultor e a
supervalorização do técnico-cientista, que impõe técnicas importadas,
desconhecidas pelo agricultor, assim como acontece com os insumos.
A destruição de alimentos, o consumo exagerado, a insustentabilidade a longo
prazo e o balanço energético negativo também são características próprias da
agricultura moderna. Dentro das estruturas de transformação de alimentos, a
perda e a ineficiência do processo são muito grandes. A destruição de alimentos
pode ser observada através das questões de mercado, da estocagem, do transporte
e da comercialização.
A agricultura moderna, extremamente consumista, não fecha ciclos, não tem a
preocupação de reciclar, de regenerar, de fazer com que o produto retorne para
a fonte. Isto é observado nos lixões das cidades. O material orgânico não
retorna para a agricultura em forma de adubo e o material mineral — latas,
vidros — não retorna para a produção. tudo é consumido ou descartado. O não
fechamento de ciclos tem um balanço energético negativo. A sociedade moderna
consome mais do que produz.
E isto tem reflexos na insustentabilidade da agricultura moderna.
Considerando-se a história da humanidade, este novo modelo de agricultura está
em prática há um período muito curto. No entanto, já mostra seu colapso.
Deve-se perceber este colapso e encontrar caminhos. Um deles é retomar a
agricultura tradicional do camponês, conhecer fundamentos e práticas agrícolas
já esquecidas e buscar alternativas sustentáveis para a agricultura.
Como alternativa à agricultura moderna amplamente praticada atualmente, a
agricultura ecológica começa a se estender no mundo e no Brasil através de
diversas correntes que se diferenciam em alguns pontos, mas possuem princípios
comuns. Estas tendências têm origem e precursores diferentes, recebem
denominações específicas — Orgânica, Biodinâmica, Natural, Permacultura,
Alternativa, Nasseriana —, mas possuem o mesmo objetivo: promover mudanças
tecnológicas e filosóficas na agricultura.
Agricultura Orgânica: é a mais antiga e tradicional corrente da agricultura
ecológica. Teve origem na Índia e foi trazida por acadêmicos franceses e
ingleses, ainda hoje influenciando a sua sistemática de trabalho. A agricultura
orgânica é baseada na compostagem de matéria orgânica, com a utilização de
microorganismos eficientes para processamento mais rápido do composto; na
adubação exclusivamente orgânica, com reciclagem de nutrientes no solo; e na
rotação de culturas. Os animais não são utilizados na produção agrícola, a não
ser como tração dos implementos e como produtores e recicladores de esterco.
Agricultura Biodinâmica Originária da Alemanha, é baseada no trabalho de
Rudolf Steiner. As principais características, além da compostagem, é a
utilização de “preparados” homeopáticos ou biodinâmicos, elementos fundamentais
na produção que são utilizados para fortalecimento da planta, deixando-a
resistente a determinadas bactérias e fungos, e do solo, ativando sua
microvida. Os animais são integrados na lavoura para aproveitamento de
alimentos, ou seja, aquilo que o animal tira da propriedade volta para a terra.
A importação de adubo orgânico não é permitida, pois materiais orgânicos de
fora da propriedade ou da região não são adequados por não possuírem a
bioquímica, a energia ou a vibração adequada à cultura. Existe a preocupação
com o paisagismo, com a arquitetura e com a captação da energia cósmica. A
agricultura biodinâmica está baseada na Antroposofia, que prega a importância
de conhecer a influência dos astros sobre todas as coisas que acontecem na
superfície da terra.
Agricultura Natural: Com origem no Japão, a principal divulgadora desta
corrente de trabalho ecológico é a Mokiti Okada Association (MOA). Além da
compostagem, utilizam microorganismos eficientes que têm capacidade de
processar e desenvolver matéria orgânica útil. Utilizam a adaptação da planta
ao solo e do solo à planta. Este é o primeiro passo para a manipulação genética
e, conseqüentemente, para a dominação tecnológica, característica semelhante à
agricultura moderna, não sendo bem aceita por outras correntes da agricultura
ecológica.
Permacultura: Tem origem na Austrália e no Japão e segue o pensamento de
Bill Mollison. As principais características são os sistemas de cultivo
(sistemas agro-silvo-pastoris) e os extratos múltiplos de culturas. Utilizam a
compostagem, ciclos fechados de nutrientes, integração de animais aos sistemas,
paisagismo e arquitetura integrados. Na Permacultura nào existem tecnologias
adequadas ou próprias, mas sim “tecnologias apropriadas”. A comunidade tem
determinada importância, deve ser auto-sustentável e auto-suficiente,
produzindo seus alimentos, implementos e serviços sem a existência de capital.
A comercialização deve ser feita através da troca de produtos e serviços.
Agricultura Alternativa: Seus precursores no Brasil foram Ana Primavesi,
José Lutzenberger, Sebastião Pinheiro, Pinheiro Machado e Maria José Guazelli.
Os princípios desta corrente são a compostagem, adubação orgânica e mineral de
baixa solubilidade. Dentro da linha alternativa, o equilíbrio nutricional da
planta é fundamental. Aparece, então, o conceito de Trofobiose, que considera a
fisiologia da planta em relação à sua resistência a “pragas” e “doenças”. Outra
característica é o uso de sistemas agrícolas regenerativos, e daí surgiu a
agricultura regenerativa, termo defendido por José Lutzenberger. Outras pessoas
dentro desta mesma tendência adotaram o termo agroecologia (Miguel Altieri) que
possui um cunho político e social. A agroecologia prioriza não só a produção do
alimento, mas também o processamento e a comercialização. Esta linha também se
preocupa com questões sociais como a luta pela terra, fixação do homem ao campo
e reforma agrária.
Nasseriana: É a mais nova corrente da agricultura ecológica e tem como base
a experiência de Nasser Youssef Nasr no Estado do Espírito Santo. Também
chamada de biotecnologia tropical, defende o estímulo e manejo de ervas nativas
e exóticas, a multidiversidade de insetos e plantas, a aplicação direta de
estercos e resíduos orgânicos na base das plantas, adubações orgânicas e
minerais pesadas. Nasser diz que a agricultura de clima tropical do Brasil não
precisa de compostagem, pois o clima quente e as reações fisiológicas e
bioquímicas intensas garantem a transformação no solo da matéria orgânica. No
Brasil, defende Nasser, o esterco deve ser colocado diretamente na planta, pois
esta sabe o momento apropriado de lançar suas radículas na matéria orgânica que
está em decomposição, e os microorganismos do solo buscam no esterco os
nutrientes necessários para a planta e os levam para baixo da terra. Outro
ponto interessante é o uso de ervas nativas e exóticas junto com a cultura para
que haja diversidade de inços. Desta forma, é preciso manejar as ervas nativas
de maneira que elas mantenham o solo protegido e façam adubação verde. Não
temos uma agricultura de solo, mas de sol.
Todas estas diversas correntes e tendências dentro da agricultura ecológica
concordam que a agricultura sustentável precisa de alguns princípios básicos
para se implantar como tal. O primordial seria o respeito, a observação e o
diálogo com a natureza. Um verdadeiro camponês, agricultor, agrônomo ou técnico
agrícola deve ter a capacidade de perceber e de entender o que está acontecendo
com a planta e com o animal. Isto resulta no uso da natureza a favor da cultura.
Também é importante o aproveitamento de recursos naturais renováveis, a
reciclagem de lixo orgânico e de resíduos, a adubação orgânica e a
humidificação do solo, a adubação mineral pouco solúvel, o uso de defensivos
naturais, o controle biológico e mecânico de insetos e ervas, a permanente
cobertura do solo e a adubação verde.
Outras técnicas comuns são a diversificação dos cultivos e dos animais, a
consorciação e a rotação de culturas e a não-utilização de agrotóxicos, adubos
químicos solúveis e hormônios vegetais ou animais. Com relação a defensivos
naturais, alguns são tolerados pela agricultura ecológica. Nenhuma corrente
recomenda produtos para controle de insetos, ácaros ou fungos, mas existe a
possibilidade de usar extratos e caldas vegetais — piretro, nicotina, retonona,
sabadilha —, pó de enxofre, calda bordalesa e sulfocálcica, sulfato de zinco,
permanganato de potássio. Estes produtos são usados com pouco ou menor impacto
ambiental. Soluções de óleo mineral, querosene e sabão são produtos que podem
ser usados, pois não são intoxicantes ou impactantes do meio ambiente.
*O autor é engenheiro-agrônomo formado pela UFRGS em 1987, é apicultor
profissional e foi Coordenador-Técnico da Fundação Gaia.