AgirAzul 2 - Painel com Ecologistas parte 1
AgirAzul Memória
Todo o conteúdo editorial da publicação em papel de 1992 a 1998
Pesquise em todo o conteúdo
AgirAzul 2

Os Encontros do Rio / Depoimentos

Painel com ecologistas mostra o que foram os Encontros no Rio de Janeiro

Parte 1 de 3

Numa promoção conjunta do  AgirAzul — Boletim Ambientalista e Cooperativa Ecológica Coolméia, na sede desta última, foi realizado, em 23 de junho de 1992, na Cooperativa Ecológica Coolméia, em Porto Alegre, painel com ecologistas gaúchos que estiveram participando de alguma forma da Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento e o Fórum Global, no Rio de Janeiro. Participaram do painel Magda Renner, presidente da ADFG Amigos da Terra — secção brasileira da Amigos da Terra Internacional, Hilda Zimmermann, representando a Sociedade Amigos da Amazônia Brasileira, Arno Leandro Kayser, representando o Movimento Roessler, e José António Lutzenberger, diretor da Fundação Gaia : ex-secretário de meio ambiente da presidência da República. Outras entidades, embora convidadas, não se fizeram representar.

Como anfitriã, pela Coolméia, atuou a agrônoma Glaci Campos Alves.

AgirAzul publica excertos do Painel — cabe ressaltar que a transcrição da gravação manteve o mais possível a forma de linguagem falada. Juntamente com outros textos publicados nesta edição do AgirAzul, procura-se proporcionar uma idéia do que foram os acontecimentos do Rio de Janeiro.

Magda Renner

Nossa entidade foi em quatro pessoas para o Rio. Procuramos acompanhar o Forum Global, mas também tínhamos credenciais para entrar no Riocentro, onde os Governos se encontraram. Então, nos dividimos. Além disso participamos de algumas reuniões de mulheres que aconteceram na cidade do Rio de Janeiro,

O Parque do Flamengo, onde estavam as organizações não-governamentais, fica 40 km do Riocentro (N. do E. — O encontro oficial aconteceu no Riocentro). Tenho certeza de que se as ONGs estivessem localizados ao lado, às vistas dos "oficiais", nós teríamos causado certamente um outro impacto nesta reunião oficial. Havíamos lutado muito contra este espaço imenso entre uma realização e outra. Assim mesmo, da parte dos "oficiais", muitas personalidades foram ao Forum Global para ver o que lá estava acontecendo.

Antes de começar já havia 18 mil inscritos no Forum Global. Realmente, houve um tremendo afluxo de gente, o que nos deu grande satisfação. Neste Parque do Flamengo, havia 32 estruturas, tendas, dentro das quais se realizavam conferências, debates, grupos de estudo, etc., sendo que o maior de todas era o Planeta Fêmea, que era das mulheres. Nós tivemos algumas mulheres que se sobressairam lá — não eu —, a Vandana Shiva (N. do E.: indiana, pesquisadora da área florestal) e a Gro Brundtland, que foi da Comissão de Meio Ambiente e Desenvolvimento, que eu até então pessoalmente não adorava. Mas, nesta conferência, ela se mostrou uma pessoa determinada a lutar realmente. Tanto que último dia da Conferência Oficial, passou um "carão" em todos os seus colegas, os governantes dos países que lá estavam, porque simplesmente não tinham chegado a consensos nem a conclusões que pudéssemos dizer "o mundo agora vai em uma nova direção".

No que se refere à Conferência Oficial, eu tendo vindo com muitos quilos de papéis; quanto mais eu leio as declarações oficiais, tanto mais triste eu fico. Na verdade, as conclusões que temos nas mãos até o presente momento e que possivelmente não  tenhamos ainda as últimas conclusões, mas os tratados que sairam são muito mais de "boas intenções". Foram estabelecidos alguns princípios oficiais. São coisas que a gente pode cobrar depois.

A Agenda 21 apareceu em todos os jornais: seria instrumento de trabalho dos governos de agora diante, até o próximo século. Esta Agenda 21 começa com uma série e princípios que são oficiais e que todos assinaram etc. etc. Não houve acordos que tivessem força legal. Isto não. Eu tinha até o último momento esperança de que pelo menos na questão do clima, saísse um acordo com força legal dizendo: bem, vamos baixar a emissão de CO2 até o ano tal, até a meta tal. Acordos, neste sentido, não sairam.

No Forum das ONGs, foram discutidos 38 assuntos. Claro que todos eles estão interligados como nós sabemos. E sairam 38 chamados "Tratados". Eu considero que aquilo foi uma "glória" porque estavam lá reunidos mais países representados no Forum das ONGs do que na parte oficial. Foi possível organizar os grupos de trabalho das diferentes tendas, onde havia um assunto, como p. exemplo, as "corporações transacionais", suas influências sobre a vida hoje, o que significam de impacto no meio ambiente. Juntavam-se naqueles grupos, ficavam fazendo seus estudos, depois eram apresentados, estes documentos, estes tratados, ao grande grupo que reunia no Hotel Glória, num salão para 500 a 800 pessoas. Apesar de muitos debates, conseguiu-se chegar a estes tratados finais e alguns já foram enviados às Nações Unidas e outros ainda serão enviados. Então isto nós consideramos uma glória, porque havia também aquele medo que no Flamengo, aquilo se tornasse grande festa popular.

Aliás, quando víamos a televisão à noite, ficamos muitas vezes muito decepcionadas: quando mostravam os Forum das ONGs, sempre se mostrava um grupo dançando, cantando. Tudo isto também aconteceu lá mas raras vezes se mostrou que, naqueles auditórios, 300 a 400 pessoas sentadas num calor de mais de 42•C, discutindo e trabalhando. Por outro lado é óbvio que, no Flamengo, havia aquela grande massa de pessoas que iam lá por curiosidade porque além destas tendas onde se faziam os trabalhos, havia 600 estantes. Poderia ter se tornado assim uma grande festa, mas não foi. Achei muito positivo muitos professores e alunos que mesmo não compreendendo o que é ecologia, receberam pelo menos um incentivo, provocando curiosidades nas crianças.

Agora, eu vou rapidamente contar um fato a vocês que eu pessoalmente achei interessante e não só interessante mas também lastimável. Na conferência oficial alguns poucos, muito poucos, representantes dos ONGs tiveram possibilidade de falar. Entre estes um grupo que se chama Ação dos Jovens Internacional. Eles receberam a palavra no plenário do Riocentro, onde falavam ministros de Governos. Iniciaram seu discurso com um agressão que eu acho que não se constituia em desaforo. Foi uma moça do Canadá que falou e sua primeira frase foi: "Acho que os Estados Unidos poderiam fazer muito mais do que fizeram até hoje pelo ambiente". A expressão em inglês pouco mais forte mas nada muito horrível. O que aconteceu? Naqueles grandes salões, imitando as Nações Unidas em Nova Iorque, tínhamos a tradução simultânea, transmissão pela televisão e muito mais. O que aconteceu? Antes de terminar a alocução da jovem, foi simplesmente desligada a transmissão para fora do recinto. Não sei se vocês tomaram conhecimento disto. Esta foi a única vez que isto aconteceu. Os trinta, quarenta jovens naturalmente ficaram enraivecidos por isto e sairam do plenário e convocaram a imprensa para um determinado lugar no jardim para darem um a entrevista. Agora vocês tem que saber que lá existiam mais de mil repórteres. Deu uma corrida para lá e o que aconteceu: os guardas das Nações Unidas se meteram no meio e prenderam os jovens e até, nesta corrida, quebraram um vidro, detendo inclusive um religioso budista que nada tinha a ver com o fato. Mas entre os jovens três ou quatro se salvaram e sentaram na grama, ao lado da entrada no plenário e aí divulgaram cartazes, de desenhados atrás dos cartazes oficiais das Nações Unidas: "Vamos falar sobre direitos humanos, agora!". Um outro cartaz dizia: "Vamos terminar com os negócios como são hoje".

Acontece que nas Nações Unidas é proibido protestar. A polícia se lançou novamente em cima destes cartazes, rasgando-os. Como eu conhecia as duas meninas que a Polícia estava levando, acompanhei um pouco aquilo, e, com tanta gente, acabei me perdendo deles. Mas o fato é que a meia noite estavam todos liberados. Acho que estes fatos nos mostram alguma coisas.

Eu estive três dias nesta reunião oficial metade dos governantes eu ouvi, "a importância do cidadão, a importância das ONGs; as ONGs é que devem fazer; as ONG é que são isto, aquilo, etc.". Mas, em 1° lugar, pouquíssimas pessoas que tiveram voz para uma vez se pronunciar na oficial; em 2ª lugar, quando dão oportunidades a um grupo de jovens
se apresentar, a atitude foi esta, de impedir a transmissão. Realmente, nós somos considerados cidadãos de segunda categoria mesmo. Nós servimos muito bem quando é para participar de um programa do Banco Mundial e acaba aí.

Um dos discursos que nos chamou a atenção foi o do presidente da Costa Rica. Ele demonstrou que desde 1949 o seu país segue exatamente as políticas do FMI, não gasta um tostão com exército e no entanto o povo de lá não consegue sair da miséria. Então ele demonstra um pais que seguiu todas estas políticas e também não acabou com a miséria entre seu povo, o que significa que países do terceiro mundo, só por si mesmos, não conseguem vencer esta fase horrível de problemas econômicos.

Houve um discurso que achei assustador. Do Albano Franco, da CNT...

LUTZENBERGER — Há...Albano Franco.. (...)

RENNER — Mas Lutz, é (...) mas tem muita gente seguindo..

LUTZENBERGER — Mas o que ele disse?

RENNER — Nós temos o discurso.  É o liberalismo. É o neoliberalismo que todos promovem hoje nos Estados Unidos, aqui e muito mais. Ele diz o seguinte: o setor privado que justamente são grandes empresas transacionais, etc.. que esse setor privado que vai cuidar do meio ambiente porque governo não pode cuidar do meio ambiente. As galinhas e as vacas não são uma espécie ameaçada porque tem um dono: tudo que não tem dono é que são as espécies ameaçadas. Porque o dono faz dinheiro através da venda de galinhas e vacas. No Forum da "Liberdade" quase me massacraram. Mas o Albano Franco naturalmente não fala de galos e galinhas. Mas também é aquela coisa, "a liberalização total", "temos que promover e fomentar competitividade", "tenho que usar a natureza mais mais, produzir mais, ai fica mais barato..". Esta coisa de liberalismo é assustadora porque todos os governos estão promovendo isto aí como a salvação. Promovem a competitividade ao invés de complementaridade.

LUTZENBERGER —  Mas é muito bom que eles estejam dizendo tudo isto aí. O Bush disse abertamente que estava defendendo as suas indústrias. Foi honesto. Esses caras são honestos.

RENNER — Agora deixa eu contar uma. Aí, eu fui convidada para uma entrevista numa rádio estrangeira. Estavam convidadas oito pessoas de vários países e tinha também um sr. do Banco Mundial — porque o Banco Mundial não pode faltar em nenhuma. Aí, o BM começou a falar o que eles tinham feito, que maravilha, aquelas estatísticas e tudo mais. Quando terminou, comecei a criticar o BM e aí eu disse: pois é.. enquanto o Banco Mundial seguir a política do sr. Lawrence Summers (N. do Editor: veja íntegras de correspondências entre Lutzenberger Summers na edição número zero do AgirAzul), o terceiro mundo que se cuide — Summers é o economista-chefe do Banco Mundial que defende que as indústrias poluídas venham para o 3° mundo porque sub-habitado, de qualquer maneira entre mil crianças, trezentas morrem antes dos cinco anos e coisas pior ainda — aí não nos deixaram falar mais...

Arno Kayser

Como eu fui representando o Movimento Roessler, fui sozinho.. nossa entidade é pobre...

ZIMMERMANN — É, os gaúchos estavam mal lá...

KAYSER — É, e tem uma explicação bastante lógica, E o retrato de uma situação. Mas é uma coisa que a gente teria que avaliar a nível de Rio Grande do Sul. Eu não participei da Conferência Oficial. Como estava sozinho, tentei participar mais de algumas reuniões sobre agricultura e educação no Forum Global, que são as coisas mais voltadas mais para meu trabalho e também procurei aproveitar toda a oportunidade que surgiu. A experiência do Forum Global foi, em termos de exercício em torno da sociedade futura,
uma prova concreta de que possível a convivência harmônica entre as pessoas das mais diferentes origens. Quem melhor testemunhou isto foram as nações indígenas que se fizeram presentes, principalmente os índios dos Estados Unidos e da América do Norte que colocaram isto muito claramente. Colocaram-se como representantes das Nações sem Estado, teoricamente não fazem nem parte das Nações Unidas —  não tem governo, não tem Estado —.  A experiência histórica deles mostrou que diante de uma opressão
maior, vários grupos que viviam brigando entre si passaram por cima das diferenças
culturais — que eram coisas menores — e, sem perder sua própria identidade, trabalharam prol da questão ambiental, vendo necessidade de mudança. O Forum Global foi muito isto, como experiência das pessoas que participaram Foi um exercício de convivência incrível.

Houve momentos que foram marcantes. Numa noite houve a Vigília da Terra em que foi feito uma invocação do sagrado no início da noite por mais trinta culturas religiosas nem se pode falar no nome de Deus porque algumas las o aceitavam a idéia de Deus, tinham outros conceitos sobre o Divino —  começou com um grito por um instrumento musical dos aborígenes australianos que tinham um poder de vibração muito grande e depois, durante a noite inteira, em cada tenda, cultos muçulmanos, judeus, budistas, cristãos, enfim uma enormidade de culturas diferentes. No final da madrugada todos se reuniram fizeram uma saudação ao amanhecer. Os porta-vozes da reunião foram o Dalai Lama, D. Hélder Câmara e o D. Luciano Mendes. Então isto para mim, a gente olhando a história ... já se fez muita guerra, muita destruição, muita conquista, o próprio imperialismo tem sua base calcada em diferenças religiosas ali foi um momento em que diante da causa da deusa Terra, divindade Terra, que está ameaçada, estas pessoas conseguiram abrir mão das suas diferenças sem perder as suas identidades. A gente via as pessoas com seus trajes. Os indús com aquela roupa colorida deles, os africanos com seus trajes típicos, os índios do Peru, todos com suas identidades e juntos, somando.

Acho que foram alguns milhares de pessoas que vivenciaram esta coisa de que é possível uma sociedade pacífica, que o Planeta é uma entidade que nos une, que nos uma identidade, nos dá um sentido de responsabilidade com as pessoas, que é uma coisa que falta. modo geral nossa visão é muito pequena, não percebe as dimensões dos nossos atos.

Tivemos oportunidade de ver vários tipos de trabalho "pé-no-chão" que estão acontecendo em vários lugares do mundo, a nivel de comunidade, procurando desenvolver resolver problemas de reflorestamento, de agricultura, problemas de poluição. Um pessoal do Ceará apresentou um trabalho sobre como salvar crianças que estavam morrendo de desnutrição só com treinamentos com as mães, ensinando fazer comida, coisas simples.

Houve o exercício de uma sociedade horizontal, sem hierarquia, de respeito a diversidade. Para não dizer que não houve briga, houve uma entre os amigos dos animais e os caçadores...

ZIMMERMANN — ...Cláudio Sideral liderou..

KAYSER —  ... acho que foi a única exceção eles arrasaram com barraca dos caçadores, picharam... Foi uma coisa lamentável, mas foi aquela exceção para confirmar a regra. Participei bastante das reuniões do IFOAM, já que trabalho com agricultura orgânica. Eu já havia estado em outras reuniões e notei um amadurecimento muito grande dos países do primeiro mundo sentido de dar importância também à questão social no terceiro mundo.

A IFOAM se preocupou durante muitos anos com padronização sobre o que é um produto biológico, muito preocupado com a questão do comércio internacional, o selo de qualidade. Várias pessoas da Espanha, da Bolívia, do Brasil, colocaram a coisa a nível crítico: é muito mais importante o trabalho político do difusão da agricultura orgânica como solução. Eu senti que houve um amadurecimento comparando com outras reuniões em que estive. As pessoas de terceiro mundo colocaram-se em pé de igualdade. Para as pessoas que estavam lá, acabou o primeiro, segundo, terceiro mundo: existe
um mundo só.

Acho que a participação das mulheres, como a Magda falou, foi uma coisa muito bonita em termos de colocar : responsabilidade da mulher perante o planeta.

Outra coisa que me chamou muito a atenção foi, no primeiro dia, uma celebração muito em cima da questão cultural. Para mim ficou claro que as culturas locais, a biodiversidade cultural, ela tem a resposta, ela tem o equilíbrio destas coisas, manifestação livre destas coisas, tem a proposta saúde para planeta. Eu vi trabalhos com inspiração diferentes culturas que prelo equilíbrio do planeta.

A sociedade civil do planeta demonstrou que está madura. Está pronta agir localmente, tem consciência global, e eu acho que os políticos demonstraram claramente que são muito fracos para a gente deixar — vários representantes estiveram no Forum Global e eles colocaram a respeito do Conferência do Riocentro que a gente não pode mais confiar nos políticos de maneira nenhuma grande exceção no sentido politico foi a Brundtland.

Eu também gostei muito do Albert Gore, que é um senador americano e a gente fica torcendo daqui para que este cara chegue um dia a presidente (N. do E.: alguns dias depois deste painel, Gore foi indicado vice-presidente na chapa do partido democrata nas eleições americanas)  Acho que serviu muito também para a gente repensar que gente tem dos americanos como a "praga na terra" e na verdade isto é um preconceito que a gente tem.

RENNER — Todos os encontros preparatórios ajudaram a estabelecer estas pontes porque a gente se lembra que nós tínhamos muitas diferenças com os grupos ecologistas do Norte. Lá tudo se juntou, as pontes foram solidificadas. Naturalmente grupos ecologistas do Norte refletiam a realidade deles. muito mais fácil combater a poluição do que ver os problemas sociais que estão ligados a isto.

Ali houve um amadurecimento muito grande.

KAYSER — Acho que houve e retorno.. inclusive hoje eu estava lendo comentário que saiu no jornal de Novo Hamburgo escrito pelo ex-secretário da Indústria e Comércio, Gilberto Mossmann, uma pessoa que sempre se colocou a favor da indústria e ele reconhece neste artigo — ele agora é presidente ACI de Novo Hamburgo — que ficou surpreso com a participação da Organizações Não-Governamentais, que ele esperava que iria ser uma baderna, um oba-oba, um carnaval, que ele ficou surpreendido com o nível de seriedade, apesar do "exotismo" de certas figuras. Realmente havia figuras bastante exóticas na aparência, mas extremamente sérias. Eu senti na
grande maioria das pessoas...

ZIMMERMANN — A solidariedade...

KAYSER — .. a solidariedade, o respeito. Tinha alguns lunáticos no meio mas acho que eles também contribuiram, uns — a parte dos loucos também esteve representada —  protestavam dizendo que no dia 12 de outubro mundo ia acabar... todo este tipo de coisas.. Mas foi um grande exercício de democracia, de solidariedade. Havia um tom muito leve nas pessoas, mesmo naquelas gente sabe tem propensão a serem mais "sangüineas*, bastante tranqüilas na sua forma de se colocar, muito esforço sentido do entendimento isto deixa gente bastante tranqüilo. De modo geral acho que a mídia não vai passar já que é uma coisa muito virulenta, mas ao mesmo tempo se operou uma coisa dentro das pessoas que estiveram lá.

Eu voltei com mais três pessoas de Passo Fundo e a gente passou três dias viajando juntos e discutindo essas coisas. A gente sente que amadureceu. Eu sinto isto: um amadurecimento interno. Eu sinto que toda uma geração de pessoas — já que lá havia muita juventude — muita gurizada, tinha trabalhos de uma seriedade muito grande. Eu sai muito tranquilo, porque tenho certeza de que isto vai se espalhar pelo mundo inteiro. Acho que já esta acontecendo essa transição para uma sociedade ecológica na prática. Só que na surdina.

Sinto que a Conferência, o Forum Global, foi um momento de amadurecimento. Acho que nos falta capacidade de articulação e neste sentido tecnologia vai nos ajudar muito, a informática. Estes tipos de instrumentos os próprios indígenas incorporaram muito bem .. eles usam avião, computador, essas coisas...sem deixar de ser índio. A gente tem que aprender. Às vezes temos tendência de dizer que isto é um toque da mão do mal, mas são ferramentas. Temos que aprender a usar mas ainda falta competência.

A maior demonstração de que houve muita falta de competência foi, por exemplo, a infraestrutura de alimentação do Forum, sustentada por uma multinacional, a Coca-Cola. Aí a gente tem que tirar o chapéu para estas pessoas, porque eles são competentes. Botaram trinta e poucas barraquinhas com comida, comida que eles conseguem botar, mas foram competentes. Se não estivessem eles lá, não teria nenhuma outra entidade — eu sei que se tentou — em condições de garantir isto. Se não, as pessoas não poderiam estar ali, teriam que se deslocar muito mais...

LUTZENBERGER — ...teria havido mais dinheiro para o Forum Global se no começo alguns não se tivessem negado a receber o dinheiro...

RENNER — E depois tiveram que aceitar..

KAYSER — Acho que não corrompeu. A Coca-cola lá não corrompeu. As pessoas viam aquilo e sacaram isto.. quer dizer é difícil trabalhar para se conquistar as coisas mas...

RENNER — Foi um acontecimento histórico....

KAYSER — Outra coisa que me chamou a atenção: as pessoas estavam extremamente lúcidas. Esperava-se consumo exagerado de drogas, não se viu isso, nada, nada, nada, nada. Talvez tivesse alguma mas era tão insignificante. A única foi a proposta do Santo Daime, mas aí era uma proposta cultural. Acho que é isto.

ZIMMERMANN — O interessante foi que no final Maurice Strong disse: não podemos esperar mais vinte anos, dentro de três anos terá que ter novo acontecimento. Eu acho que isto certo nesmo. Não podemos esperar .

LUTZENBERGER — Mas no ano que vem o governo britânico vai fazer uma reunião de ONGs... as coisas estão mudando...

Nota do editor: Neste ponto, Hilda Zimmermann faz considerações sobre sua estada no Rio de Janeiro, abordando principalmente a questão indígena. AgirAzul publicará nos próximos números matérias sobre o assunto, incluindo, as colocações feitas por ela e de outros participantes da noite sobre a questão.

José Antonio Lutzenberger

Todo mundo me pergunta: foi um sucesso ou um fracasso? Isto depende de como gente olha a Conferência. Se a preocupação é com resultados concretos convenções, tratados que obriguem à ação, que sejam abarcantes, que incluam todos os problemas importantes, então foi um fracasso porque o que foi assinado foi muito pouca coisa, sem muita força e sem obrigação. Entretanto, se nós olharmos de uma maneira mais ampla, eu acho que foi a reunião mais importante da humanidade até hoje! Nunca no passado houve reunião de todos os países do mundo: não faltou um Nunca houve este tipo de reunião.

Nas próprias reuniões de governo a gente notava que a coisa vinha crescendo. Tinha muito delegado de país que nunca ouvira falar de ecologia. Vieram pensando que iam assistir uma grande festa, especialmente os potentados da África que são todos uma corrupção que a nossos a chegam perto.

Gente como o Mobuto, considera o país dele todo propriedade particular, e os árabes, então, nem falar. Os árabes não queriam nem falar de economia de energia.

Mas, independente, portanto, dos tratados que foram ou não assinados, acho que Conferência é um marco, não é um fim, é o começo.  E certamente depende do que nós todos fizermos daqui para frente. É claro que assuntos importantes como estilos de vida, explosão demográfica, energia e agricultura não foram nem tocados a não ser em contextos maiores...

Eu não esperava mais do que aconteceu a nível oficial. Acho que é muita coisa!

Quem conhece político, mentalidade de político em geral, não podia esperar mais, e no entanto, foi muito mais do que se esperava..

Quando o homem, como Strong, reconhece que tem que repensar tudo... Os discursos do Strong são quase a nossa linguagem — quase! E também, os políticos não são tão monolíticos e estereotípicos como muita gente os vê. Tem de todos os calibres. A Brundtland caminhava sozinha no meio do povo, se tinha segurança não se via. Encontrei a ministra britânica, caminhando na rua, sozinha.

Lembro-me em Brasilia, quando Bush veio, veio com dois boeings 747, mais um..., o maior avião do mundo com 800 pessoas. Quando veio o ministro alemão de ciência e tecnologia, veio de 707 e com mais de 800 pessoas. E quando ela veio, veio de Varig, 1° classe sozinha. Há de tudo.

Nós temos que ver esta conferencia como o começo.

O que está começando a entrar na cabeça dos políticos, pelo menos dos mais
esclarecidos…ouvi Miterrand, em Paris, dezembro passado, num discurso maravilhoso. O Major não tem jeito ainda, mas os suecos, os dinamarqueses, os noruegueses, os filandeses, estão muito adiantados. Esta gente está começando a entender um aspecto fundamental: a sociedade industrial moderna está num caminho suicida. A sociedade industrial moderna é hoje uma cultura global. O que sobram de culturas autênticas são pequenas ilhas que sobrevivem numa maré bem maior.

Cerca de 20% população global, os chamados países do 1º mundo, o melhor é dizer os ricos, porque isto inclui os ricos do 3°, os ricos deste pais aqui são, em grande parte, muito mais ricos que os europeus. Estes ricos vivem um estilo de vida, de consumismo, de esbanjamento, que não é sustentável nem para eles e não pode ser estendido para o planeta todo. No entanto, esta é a doutrina, que prevalece em toda as partes do mundo
em quase toda a totalidade dos políticos. Querem levar este estilo de vida até o último chinês atrás da última montanha... até o último caboclo no último barco da
Amazônia...

Se fosse estendido ao resto do mundo este estilo de esbanjamento irreversível de recursos... o desastre seria acelerado, rápido e imediato e enquanto dura, os pobres ficam cada vez mais  pobres e o mundo cada vez mais devastado.

Isto está começando a entrar na cabeça de gente importante, dos tecnocratas também. E a variedade aí é maior ainda que nos políticos. Há dos mais diversos níveis de burrice e sabedoria.

O que nós estamos vivendo, hoje, é uma revolução, ou melhor, uma evolução social. Aqueles que vivem este processo, em geral não se dão conta. Só se vai entender em retrospectiva. Daqui a mais ou menos cinquenta ou cem anos, todos vamos ver que houve aqui uma coisa muito importante. E foi este ano. Vejo nessa Conferência algo muito semelhante ao que aconteceu na Conferência de Helsinque, donde saíram tratados de cooperação direitos humanos entre os países do leste do oeste. Os países do leste muito a contragosto acabaram assinando. Na época, ninguém deu muito valor, mas foi o que causou o colapso do comunismo. Foi onde começou a ferver o caldeirão e os povos dos países comunistas criaram coragem e começaram a brigar.

E agora aconteceu algo semelhante. 

Ela foi uma faísca que desencadeou processos, não importando se foram ou não assinados tratados. O fato do Bush não ter assinado o tratado da biodiversidade foi muito bom, porque foi honesto. Ele disse que não poderia prejudicar as suas empresas de biotecnologia.

Apesar do tratado ter ainda previsões de patenteamento, aliás, muito pouca gente se dá conta, mas aí a ameaça muito maior que muitas do passado e as entidades ambientais deveriam estar brigando hoje: o tratado, as discussões sobre a biodiversidade em vez de terem sido conduzidas em cima da preservação dos ecossistemas, porque se eu quero preservar espécies, eu tenho que preservar os ecossistemas. E isso não foi discutido, práticamente. Há três ou quatro frases sobre isso. Foi discutido negócio e comércio, patente.
(..)

Durante vinte anos, estamos lutando aqui neste País, no Congresso e no Senado, para que não seja aprovada a legislação que permite, por um lado patenteamento de seres vivos no Brasil e a aceitação das patentes dos outros, por enquanto, isso ainda não aconteceu. Mas está havendo sérios projetos do Congresso no Senado, uma pressão fabulosa.

A maioria dos deputados não sabe o que isso significa. Acham bonito. Se não for feita uma luta muito importante, inteligente da parte dos ambientalistas, acho que tipo de lei vai passar. Na Europa, já passou. Nos EUA, passou. Recentemente, nos EUA, foram patenteados, preventivamente, saber que fazer com eles, 2600 gens tirados do cérebro humano.

Eles dizem: quem sabe algum dia posso usar! Estão patenteando no nome de grandes empresas.

Agora vocês vejam, é por isso que o Bush não quis assinar o Tratado da Biodiversidade, porque, apesar de reconhecer patentes, ele, por um lado, não gostou, porque quando se acha uma diversidade nova, um gen, de algum país, em alguma selva, que aqueles indígenas que descobriram aquilo tem alguma vantagem, eu até acho que isto é perigoso, porque vai fazer patenteamento. É melhor que não tenha lei nenhuma.

Se nós aceitamos que o índio patenteie a planta para ele, então os outros patenteiam depois a coisa pronta, e então não tem mais controle. Vejam o que está acontecendo hoje, no campo da farmácia, milhares de técnicos no mundo inteiro estão viajando nas últimas selvas, conversando com os povos índigenas, levando para seus laboratórios de origem, material vegetal, isolam o agente ativo, sintetizam e patenteiam. O que eles tiraram lá do mato é difícil de controlar. Como é que vai controlar isso?

Agora, depois que eles tem substância sintética e patenteada, é deles, nós vamos pagar a patente toda vida;  e nem sabemos da onde é que ele tirou.

Se essas coisas passarem, se tendência, que está bem estabelecida nos EUA, e Europa, se fixar, se nossos países aceitarem este tipo de proteção à chamada propriedade intelectual, então teremos uma segunda vaga de gigantesca marginalização na agricultura. Agora vão morrer os médios os grandes agricultores. A agricultura vai ficar na mão de meia dúzia
de grandes corporações e transacionais. E, seguramente, numa fase posterior, daqui cinco ou 10 anos, vão começar a comprar as indústrias de máquinas agrícolas. Isso é uma coisa que nós todos temos que nos conscientizar.


JOÃO BATISTA SANTAFÉ AGUIAR — O tratado de biodiversidade assegura a biodiversidade?

LUTZENBERGER — Não, ele apenas tem algumas cláusulas que dizem que os donos, melhor, os povos que contêm esses conhecimentos devem ser indenizados de alguma forma.  E de outro lado diz, que quando, nos países do 1° mundo, certas substâncias forem patenteadas, que parte do lucro deve reverter para os donos originais. A patente lá, a gente controla, agora, os direitos aqui não há como defender.

Bush foi bem honesto quando disse que, "eu não posso deixar de defender as nossas empresas de biotecnologia". Ele foi absolutamente honesto! E bom que ele seja assim, pelo menos está todo mundo vendo. Então, aqui está se preparando  uma coisa muito, muito grave! E aí, vamos perder a último resto de biodiversidade que ainda existe.

Hoje, se a gente vê, mesmo nas flores, nestas casas de sementes, de bulbos, vinte anos atrás, na Europa, tinham uma variedade de espécies, diminuiu drasticamente, porque quando cai nas mãos de gente maior, eles querem um trabalho mais eficiente. Lidar com 50.000 variedades para eles é ineficiência. Hoje nós plantamos as mesmas variedades de arroz que a Indochina, a Malásia, aqui no RS, no Uruguai, na Louisiana: no Havaí, etc. Mesma variedade!.. Sem falar do perigo que isso significa se bater uma peste, para a qual estas variedades, que são hoje, as mesmas no mundo inteiro, não sejam resistentes.

Então, eu acho até que foi muito bom os EUA não assinarem, porque chamou atenção, muita gente está discutindo isso. Deu a oportunidade para eu conversar com deputados europeus, que nunca tinham ouvido falar nesta coisa, o pessoal começa a pensar. Aqui outras saídas estão sendo praticadas. Nós não reconhecemos patentes, mas se eu quero fazer uma lavoura de milho, e quiser dinheiro do banco, tenho que plantar sementes certificadas, são estas sementes. Prá outras, não recebo crédito. Felizmente, o Brasil é muito grande, e nossa agricultura é muito complexa, muito diversificada. E ainda há milhares de pessoas que plantam sementes próprias.

Se não nos cuidarmos, nos próximos dez ou vinte anos, vai acontecer, algo aqui, pior do que aconteceu no passado.

Esse é um aspecto que todos temos que levar em conta.

Quem faz agricultura de horta tem que manter o máximo de diversidade.

Então, isso é fundamental! Alguns milhares de pessoas estão pensando, no mundo inteiro. Alguma coisa vai acontecer.

É claro que os governos estão sempre dez ou vinte anos atrás da consciência pública. Mas eles também aprendem, eles estão mudando.

Se no ano passado o Miterrand trouxe pra Paris 800 entidades do mundo inteiro, pagando a passagem; pagaram a minha passagem também. Agora os britânicos vão fazer isso.

(continua)


Nota do Editor: infelizmente interrompemos aqui a transcrição do painel. Nas próximas edições teremos continuação, em que Lutzenberger se refere a sua conversa privada com o Dalai Lama, ao conceito de "desenvolvimento sustentável", a sua participação no governo Collor, à questão do subsídio para agricultores, questão indigena em geral e ao caso Paiakan em particular. Neste último assunto, Hilda Zimmermann também participa. Com perguntas colocações, também, Mauricio Farias e Jairo Menegáz.